“Mapas contam histórias e também passam uma determinada visão de mundo. Se a Terra é redonda (que me perdoem os terranaplanistas), sua representação é plana (aí sim precisamos concordar com eles) e, por isso, sofre distorções. O Google Maps, por exemplo, baseia-se na muito criticada projeção de Mercator, desenvolvida por Gerhard Mercator no ano de 1569, que representa o Hemisfério Norte como maior que o Hemisfério Sul. A distorção é tal que a Groenlândia fica do mesmo tamanho que a África! Mapas, então, passam uma ideologia, não são neutros. Não é o mundo em si, mas sim uma imagem, uma ilusão.” Publicamos recentemente a parte 1 deste texto chamado “geografia sagrada islâmica” que você pode ler aqui.

Trazemos agora a continuação do texto. Confira: 

A qibla

A geografia sagrada islâmica também está intrinsecamente ligada à ideia de se voltar para a direção de Meca no momento da entoação das preces – essa também era uma das razões de a cartografia ser muito importante nos impérios islâmicos. Descobrir a direção para qual virar era uma tarefa simples para quem estivesse próximo da cidade, mas como as comunidades muçulmanas começaram a abranger outras distâncias, tornou-se um grande desafio determinar a qibla (a “direção sagrada”). Como explica Venetia Porter:

Inicialmente, esse desafio foi superado pela chamada “astronomia folclórica”: conhecimento tradicional sobre o alinhamento astronômico da Caaba que podia ser usado em diferentes localizações para encontrar a qibla. Isso levou ao desenvolvimento, no século IX, da “geografia sagrada”, que preconizava que cada região do mundo estava associada a certos fenômenos astronômicos. Mapas foram desenhados e instrumentos foram elaborados para indicar a direção da prece em uma série de localizações distintas.

O mapa abaixo mostra várias cidades ou regiões divididos em grupos acompanhando um círculo que envolve a Caaba, colocada no centro do atlas náutico. Por exemplo, Bagdá, al-Kufa e Basra, no Iraque, estão localizados na posição das “8 horas de um relógio” dentro desse círculo; enquanto al-Nuba, al-Maghasir e Takrun, na África, estão do lado oposto. Essas marcações mostram qual o posicionamento correto que o muçulmano deve se dirigir para realizar suas preces voltado para a Caaba. Apesar disso, essas posições geográficas não têm comprovação científica. 

Ao centro do mapa, situam-se, além da Caaba, o Maqam Ibrahim (estação de Abraão) e o poço de Zamzam, também importantes para a realização dos rituais islâmicos. Na inscrição magrebina acima do mapa, lê-se: “Um círculo para certificar a direção correta em direção à Meca para cada país e um guia para ficar diante de Meca”; e na inscrição inferior: “Deus, o exaltado, diz no texto do seu sábio livro, onde quer que esteja vire-se para lá (a Caaba)”.

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Ahmad al-Sharafi al-Safaqusi. Atlas náutico; 1571-2. Fonte: Bodleian Library, Oxford University. 

Também foram confeccionados instrumentos – os indicadores de qibla – com bússolas acopladas, cujos ponteiros indicam a direção de Meca a partir de várias cidades muçulmanas. No instrumento abaixo, estão 72 setores que abrangem as principais regiões e cidades do mundo islâmico. No centro, encontram-se a Caaba e o relógio de sol com um ponteiro orientado para o polo celeste; a bússola magnética está na base; ao redor da Caaba, as quatro escolas do direito islâmico (xafita, maliquita, hanbalita e hanafita).

Bayram ibn Ilyas. Indicador de qibla e bússola. 1582. Fonte: British Museum, Londres. 

Nas mesquitas encontram-se marcações nas paredes chamadas mihrab que são as indicações para onde o crente deve se voltar na hora das preces. O mesmo acontece em alguns prédios públicos e até em quartos de hotel em países islamizados. Hoje em dia, aplicativos de celular apontam para a direção correta para onde o muçulmano deve se prostar em qualquer lugar do mundo.

Antes de concluir, vamos lembrar que antes de Meca, Jerusalém era considerada a cidade para a qual todos os muçulmanos deveriam se voltar para realizar suas preces. Não há um consenso sobre quando, ou se, essa mudança ocorreu, uma vez que a qibla islâmica pode ter sido influenciada pelo costume dos judeus de se voltarem para Jerusalém no momento de rezar. Ou então, que Muhammad alterou a qibla para Meca após divergências com os judeus de Medina, entre outras teorias. 

Ao mesmo tempo, Jerusalém, como cidade sagrada, chegou a ser representada como o centro do mundo em mapas europeus. O mapa abaixo faz parte de uma versão da Bíblia editada na forma de um livro de viagens ilustrado. Refletindo conceitos medievais teológicos e geográficos, o mapa coloca Jerusalém como a intersecção central entre Ásia, África e Europa. O formato da representação cartográfica de um trevo foi inspirado no brasão de Hannover, a cidade natal do autor do mapa; os três continentes do Velho Mundo estão comprimidos nas pétalas, e a Inglaterra e a Escandinávia aparecem como ilhas em um oceano meridional; o Mar Vermelho separa a Ásia da África, e o Mediterrâneo preenche o espaço entre África e Europa; o Novo Mundo pode ser vislumbrado na parte inferior esquerda.

Heinrich Bünting. Die gantze Welt in ein Kleberblat, em Itinerarium Sacrae Scripturae. 1581. Fonte: Osher Collection. In: http://www.oshermaps.org/exhibitions/jerusalem-3000/vi-jerusalem-center-world

A geografia sagrada que se consolidou durante o período medieval ainda é bastante atual e um aspecto importante para o Islã, pois o eixo da vida religiosa de um fiel é voltar-se para Meca. Mesmo assim, é importante notar que, apesar da importância de Meca e de outras cidades sagradas dessa religião, como Medina e Jerusalém, o Profeta Muhammad procurou demonstrar que, por mais sagrada que seja Meca, a vida ritual e espiritual do Islã não está atrelada a nenhuma localização geográfica precisa. No Islã, segundo um hadith: “Toda a terra foi feita como uma mesquita para vocês”, o que, para parafraserar Dakake, pode significar (além da ideia expansionista da religião) que toda a terra é sagrada porque ela inteira seria o local de comunhão entre o divino e o humano através da oração.

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