No blog de hoje, vamos falar sobre a homossexualidade na literatura do Oriente Médio. Um dos personagens principais de Gente, isso é Londres, da libanesa Hanan Al-Shaykh (com tradução de Jemima Alves), é Samir, um rapaz libanês que viaja para a capital inglesa com um macaco para uma missão que não vou revelar qual é. O que importa para este texto é que Samir é um homem casado, pai de cinco filhos, e homossexual. A entrega do macaco funciona para ele como uma via de fuga para deixar a família e viver a sua sexualidade com mais liberdade em uma cidade europeia, onde as relações entre pessoas do mesmo gênero podem ser vividas sem tantos disfarces.

 “Samir seguiu pela rua até chegar a uma vitrine com roupas bonitas e sapatos ainda mais bonitos. Precisava encontrar um hotel barato para passar a noite, mas uma ideia o impeliu ao restaurante Tabbula: ‘Não estou indo com segundas intenções, só vou porque ali é mais fácil usar o telefone e talvez os rapazes conheçam algum hotel barato. Vou comprar uma camisa verde-pistache e uma gravata violeta. Em todo caso, meu Deus, adoro loiros e olhos azuis’.

Seguiu pensando no rapaz tímido do restaurante Tabbula que, no dia anterior, em vez de se juntar aos outros em torno de Samir e do macaco, se satisfez com um sorriso. Dedicava-se a cortar tomates em formato de rosa para colocá-los no meio dos pratos de homus; depois, começou a cortar os picles em fatias finas como se fossem os caules das rosas e também cortou o rabanete como flores, ornamentando os pratos com toda a arte e delicadeza. Tinha olhos que pareciam estar sonolentos e seu lábio inferior pendia, suplicante.

‘Não me puna, porque eu gosto mesmo de loiros de olhos azuis. Deus meu, eu estava brincando, não me esquecerei da promessa que fiz.’”

Em Londres, ele passa a frequentar clubes noturnos e fazer sexo com outros homens. Passa até mesmo a trajar roupas femininos e a usar maquiagem, tornando-se crossdresser. Quando sua mulher vem à cidade junto com os filhos custa a acreditar que o batom que encontra no colarinho de uma camisa seja do próprio Samir. Ele só pode estar me traindo com outra, conclui.

No livro de Hanan Al-Shaykh a capital inglesa vira o locus onde os personagens árabes podem ser quem eles são de verdade, ou quem eles gostariam de ser (caso de Amira e Lamís). Samir vê em Londres uma possibilidade de se relacionar sexualmente com homens brancos loiros de olhos azuis, por quem se sente atraído. Londres e os homens loiros tornam-se o “exótico” nessa narrativa que traz o ponto de vista de um homem árabe. Londres, então, como a capital do sexualidades não hegemônicas.

É uma inversão do topos orientalista em que o chamado “Oriente” é o local de liberdade e de “perversões” sexuais, no qual homens brancos europeus podiam satisfazer seus desejos com jovens árabes em situação de vulnerabilidade social. Era o que grandes autores franceses como Roland Barthes, André Gide e Michel Foucault faziam (inclusive, com acusações de pedofilia e abusos).

Conheça Gente, isso é Londres, de Hanan Al-Shaykh

Relações de poder

Em um dos contos mais marcantes de Marraquexe noir (traduzido por Felipe Benjamin Francisco), “O caminho para Meca”, de Hanane Derkaoui, temos o personagem Hamad, um amazigue nascido fora do espaço urbano que vive no bairro de Riad Zitun. Ele sempre volta do trabalho nas primeiras horas da manhã. Trabalha para um francês no bairro chique de Gueliz. Isso chama a atenção de Ibrahim e Ali, dois rapazes também de origem amazigue (mas nascidos na cidade, o que já cria uma hierarquia social entre eles) que pretendem roubar o patrão rico de Hamad.

Dando spoiler, Hamad se relaciona com Gerard, um francês rico, que passa a vesti-lo e maquiá-lo e a organizar shows pagos em sua casa em que o amado se apresenta montado como drag queen com bastante sucesso. Hamad passa a sonhar com a possibilidade de Gerard chamá-lo para morar com ele, tirando-o da miséria e dos perigos de Riad Zitun, para não ter o mesmo destino de seu ídolo Ali Ukubach:

Mesmo com 40 anos, Ukubach ainda se mostrava extremamente feminino; era, por excelência, o modelo de Hamad. Vestia roupas delicadas, pintava as unhas e passava kohl nos olhos. Cantava em casamentos e todos apreciavam sua voz agradável. Todo mundo sabia o que os homens iam fazer com ele quando o visitavam à noite, mas ninguém o reprovava. Hamad se tranquilizou com esse exemplo, acreditando que também seria aceito por todos quando crescesse e que poderia cantar nos casamentos. Também gostava de cantar e sua voz era bonita. Como não aprendera nenhum ofício, pensava que sua profissão seria cantar e dar prazer aos homens, assim como fazia Ali Ukubach. Porém, algo inesperado aconteceu. Ukubach foi assassinado. Encontraram seu corpo apodrecendo no mato do quintal de sua casa em Qsar Ait Assam. Ele havia sido decapitado e a cabeça posta longe do corpo. O crime abalou o povoado, e o coração de Hamad temeu permanecer num vilarejo em que já não se sentia seguro.

A relação de afeto entre Hamad e Gerard é atravessada por relações de poder e de dominação: o francês explora o trabalho performático do jovem amazigue ao mesmo tempo que mantém uma relação sexual com ele. Não sabemos exatamente quais as intenções de Gerard para com Hamad, pois a narrativa é contada do ponto de vista dos personagens marroquinos. Só sabemos das expectativas de Hamad, que provavelmente nunca seriam concretizadas.

Aqui abro um parênteses para fazer uma analogia com o que a historiadora estadunidense Saidiya Hartman observa, em seu livro Sedução e as artimanhas do poder (Crocodilo, 2022), que todas as relações de intimidade entre senhores e suas escravizadas são marcadas pela violência e pela dominação. Claro que Hamad não está em uma situação de escravidão, no entanto, podemos, guardadas as devidas proporções, ver o mesmo tipo de relação de dominação atravessando os personagens de “O caminho para Meca”.

Um possível destino para Hamad pode estar no livro Aquele que é digno de ser amado, do marroquino Abdellah Taïa (tradução de Paulo Werneck, lançado pela editora Nós, em 2017), primeiro escritor árabe a se assumir como homossexual. Neste romance epistolar, Ahmed, rapaz homossexual nascido em Salé (mesma cidade de Taïa), se relaciona com homens franceses, em especial Emmanuel que o leva para a França e se torna o seu “iniciador” na sociedade parisiense. Em breve, ele espera ser substituído por outro árabe, uma versão mais jovem sua (lembrando um pouco a relação entre o inglês Nicholas e a iraquiana Lamís de Gente, isso é Londres). Em suas cartas, Ahmed deixa claro que compreende muito bem como suas relações afetivas acabam, invariavelmente, sendo um reflexo das relações de poder e de dominação de um mundo ainda marcado pela colonialidade.

Ahmed também faz lembrar o personagem homossexual de Correio noturno, da libanesa Hoda Barakat (com tradução de Safa Jubran e publicado pela Tabla, em 2020), que escreve para seu pai lhe enviar dinheiro para poder retornar à terra natal. Aquele que é digno de ser amado começa com uma carta de Ahmed para o pai, que acabou de morrer; o pai do personagem de Correio noturno está hospitalizado. Nenhum dos pais responde a seus filhos.

Conheça Correio noturno, de Hoda Barakat

Homossexualidade feminina na literatura do oriente médio

Já a homossexualidade entre mulheres parece que não existe nessa literatura, ou então aparece como uma etapa anterior para o casamento heterossexual. Por causa dessa “falta” de representação que a francesa de origem argelina Fatima Daas resolveu escrever A última filha (tradução de Cecília Schuback, publicado pela Bazar do Tempo em 2022). O livro é sobre uma jovem mulher de origem imigrante se descobrindo muçulmana e lésbica.

Com capítulos curtos e sempre começando com variações em torno do seu nome – “Meu é Fatima”. “Meu nome é Fatima Daas”. “Fatima é um nome sagrado no Islã” –, bastante inspiradas no ritmo do rap e das recitações em voz alta do Alcorão, o livro causa um nó na cabeça de quem acredita que não existe mulheres muçulmanas lésbicas.

Daas não deseja abrir mão de nenhuma dessas coisas, por enquanto. Ainda que todos ao seu redor vejam como excludentes, ela tem a coragem de seguir por esse caminho e entende que é normal conviver com esses conflitos internos. O importante é, no final, ela se aceitar como realmente é.

Paula Carvalho

Paula Carvalho é jornalista, doutora em História pela UFF e autora do livro “Direito à Vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt”

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