“Passei a vê-la várias vezes por dia. O nome dela era Zuhra, mas a maioria dos moradores do nosso edifício a conhecia por ‘madame Mansur’. Outros a chamavam de ‘a empregada’. Alguns preferiam o gentílico ‘a tunisiana’.”

É assim que Habib Selmi começa A vizinha tunisiana, romance ganhador do Katara Prize for Arabic Novel e finalista do International Prize for Arabic Fiction em 2021. Kamal Achur, um professor universitário tunisiano de sessenta anos, vive uma vida pacata com sua esposa francesa em Paris… até começar a notar Zuhra, a empregada doméstica que mora no quinto andar do mesmo edifício do protagonista acompanhada do marido e do filho.

O livro vai muito além do que, a princípio, parece se tratar de uma simples história de amor, pois mostra como os afetos são permeados por relações de poder e de identidade. Kamal afirma-se como um tunisiano que se integrou perfeitamente à sociedade francesa, ainda que nunca deixe de ser um estrangeiro, um árabe, um tunisiano aos olhos dos moradores do prédio e até mesmo de sua mulher — e ele sabe disso. Assim, apesar de o despertar do amor o levar a revisitar suas raízes, seu olhar sobre a conterrânea Zuhra também é influenciado por esses mesmos preconceitos, uma vez que reforça em seu discurso a posição subalterna do objeto de sua paixão, inclusive replicando estereótipos sobre as mulheres árabes. 

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O “jogo de sedução” que se estabelece entre os dois é narrado do seu ponto de vista, o que nos faz duvidar se os olhares de soslaio, as roupas mais bem arrumadas, a maquiagem no rosto, o pedido para aprender a ler e escrever em árabe eram realmente formas de Zuhra demonstrar seu apreço pelo “vizinho tunisiano”, e se de fato trata-se de um amor compartilhado. Para termos certeza, precisaríamos do testemunho de Zuhra. Como seria essa história contada por ela? Não sabemos…

A vizinha tunisiana é um primo não muito distante de E quem é Meryl Streep?, do libanês Rachid Al-Daif — que conta a história de um casamento do ponto de vista do marido —, e, como este, expõe a ambivalência e a fragilidade de uma masculinidade que não sabe mais qual seu lugar nesse mundo. Os dois romances foram belamente traduzidos do árabe por Felipe Benjamin Francisco.

Conheça o livro A vizinha tunisiana, de Habib Selmi

Paula Carvalho

Paula Carvalho é jornalista, doutora em História pela UFF e autora do livro “Direito à Vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt”

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