Por ocasião do falecimento da grande socióloga e ativista marroquina Fatima Mernissi em 2015, o escritor marroquino Yassin Adnan organizou um livro como homenagem à autora de Sultanas esquecidas sob o título Xerazade marroquina: testemunhos e estudos sobre Fatima Mernissi (شهرزاد المغربية : شهادات ودراسات عن فاطمة المرنيسي), publicado em árabe em 2016.

Leia a seguir um trecho da apresentação da edição árabe por Yassin Adnan, que não apenas organizou o livro, mas era amigo pessoal de Fatima Mernissi.

Tradução do árabe ao português por Felipe Benjamin.

Fatima Mernissi é uma mulher difícil de classificar. No seus escritos, reflexão e literatura se mesclam, bem como se mesclam pesquisa acadêmica e ficção. Por ser naturalmente complexa, ela sempre rejeitou o reducionismo.

Não demorou para Fatima se afastar das feministas árabes que foram particularmente influenciadas pelo seu trabalho ousado do começo dos anos 80 sobre as questões da mulher. Pelo menos, pode-se dizer que ela as surpreendeu quando começou a se dedicar mais à sociedade como um todo. “Não é por que sou uma militante feminista que vou me preocupar apenas com as mulheres”, dizia Fatima, “eu me ocupei da dinâmica da sociedade pois ali é o espaço em que a mulher não está em confronto com o homem, mas em que estão atuando juntos em cooperação.”

A fim de concretizar um sonho, lançou a Caravana popular (القافلة المدنية), fazendo com que intelectuais, artistas e membros de organizações civis tivessem que descer de suas torres de marfim para interagir com os habitantes dos vilarejos no interior de um Marrocos profundo, esquecido e marginalizado. E, assim, ela deu uma lição em alguns intelectuais de esquerda, que a taxavam de burguesa, de como um intelectual orgânico pode – fazendo e não falando – lutar pela cultura e assumir seu papel dentro da sociedade.  

E, assim como Xahriar foi surpreendido por Xerazade, a versão marroquina da personagem do livro das Mil e uma noites nos envolveu a todos, pois surpreendia seus leitores continuamente, atacando-os por onde eles menos esperavam. Após seu retorno dos EUA, os acadêmicos esperavam por pesquisas “sérias”, porém ela os surpreendeu com relatos de infância e uma inclinação pelo literário. O movimento feminista esperava que ela expusesse as profundezas da mentalidade machista que serve de referência à cultura árabe islâmica, mas Fatima foi escrever para explicar às feministas como as mulheres foram estimadas e honradas na História do Islã, desde figuras como as “mulheres do Profeta” até as sultanas esquecidas. Os esquerdistas esperavam mais críticas à tradição religiosa, e eis que ela vem defender essa tradição ao modo dela, ela a jurisconsulta sufista formada na Universidade de Qarawiyyin. O Ocidente esperava que ela fornecesse mais histórias sobre o harém oriental e que continuasse a destrinchar a estrutura machista do mundo árabe islâmico, e eis que ela se volta para o próprio Ocidente a fim de expor um harém ocidental que é muito mais cruel e redutor para a mulher, atingindo-a na sua humanidade.

Fatima Mernissi é uma Xerazade contemporânea que sabe como utilizar a razão – e não o corpo – para enfrentar o reducionismo, a violência do discurso e a morte simbólica. 

Yassin Adnan

Yassin Adnan nasceu em 1970 em Safi, Marrocos, mas cresceu em Marraquexe, onde vive até hoje. Yassin é mais conhecido por seu programa cultural semanal “Macharif”, na televisão marroquina. Ele publicou quatro coleções de poesia e quatro livros de contos, juntamente com um volume de não-ficção intitulado “Marrakech: Open Secrets”, em conjunto com Saad Sarhane. Seu romance “Hot Maroc”, que se passa em Marraquexe, foi indicado ao International Prize for Arabic Fiction.

Assine nossa Newsletter