Abaixo, a introdução do organizador Yassin Adnan para livro Marraquexe noir.

Quando a Akashic Books me convidou para organizar esta antologia, nem me passou pela cabeça que eu estava me metendo numa enrascada daquelas. Marraquexe, a cidade vermelha — ou simplesmente Al-Hamra —, como muitas vezes a chamam, esteve ligada à cor escarlate desde a sua fundação em 1062 (454 H.), pelo príncipe almorávida Yussuf Bin Tachfin. Por isso, é difícil escolher outra cor para ela agora. E dentre tantas cores possíveis, justamente o preto! Afinal de contas, a cidade é vermelha, e sua gente passa dia e noite erguendo as mãos para o céu e implorando a Deus que afaste dela a escuridão, o desalento e o mau humor.

Talvez só as palmeiras consigam se recordar daquele passado remoto e sombrio quando salteadores, escondidos detrás de seus troncos, saqueavam as caravanas de passagem por ali. Sempre que os camelos das tribos dos Masmuda chegavam no local que, um dia, um sábio almorávida iria se instalar — isto é, Marraquexe —, os viajantes apressavam-se, murmurando entre si, com medo, um abafado murkuch — “aperte o passo”, em sua língua. Segundo algumas lendas, essa seria a origem do nome da cidade, que acabou perdendo, ao longo dos séculos, a função de alertar para o perigo, bem como outras conotações mais obscuras.

Hoje, os marroquinos chamam Marraquexe de Madinat al-Bahja (“cidade da alegria”), ou apenas Al-Bahja (“a alegria”), famosa justamente pela vida animada. Ela é o destino dos que buscam a felicidade, mas também diversão noturna. Seus dias são ensolarados e suas noites iluminadas. Por isso, seus admiradores estão sempre prontos para ler qualquer história sobre a cidade, menos aquelas envoltas pelas trevas. Até mesmo os contadores de causos populares na praça Jamaa al-Fna evitam narrar contos sombrios em suas fascinantes halqas — as tradicionais performances rodeadas de espectadores curiosos.

Eu ia bastante à Jamaa al-Fna na infância. Me divertia à beça com as apresentações de música Gnawa, mas fugia dos encantadores de serpente. Os macacos não me chamavam muito a atenção nem os dançarinos ou os cantores, mas eu sempre parava um pouquinho para assistir a disputas de pugilismo injustas, uma dessas lutas absurdas entre um peso-pena e um brutamontes. No ringue, às vezes, enfrentavam-se rapazes e moças, e era comum os homens serem nocauteados pelas mulheres. No entanto, as apresentações que de fato me cativavam eram as contações de história — as Mil e uma noites, as azalianas e as antarianas, a epopeia dos Banu Hilal, entre tantas outras. Ainda assim, bastava ver o Médico de Insetos indo para algum canto da praça, que eu me distraía e corria atrás dele. Para mim, ele era a estrela do lugar. Teve uma época em que sentimos a falta dele, porque ficou sem aparecer em Jamaa al-Fna por muito tempo. Seu público sabia bem que o vício, assim como o hábito de beber em público, sempre o levavam à prisão. Quando retor- 13 nava, nós, espectadores fiéis, repetíamos toda vez a mesma pergunta: “Doutor, onde o senhor estava?”, e ele respondia sereno: “Na Holanda”. Por causa do Médico de Insetos, “Holanda” tornou-se uma espécie de eufemismo de “prisão” para os habitantes de Marraquexe. Certa vez ele não se apresentou por meses a fio. Quando reapareceu, o recebemos com o mesmo entusiasmo de sempre. Desta vez, porém, alegou ter ido para a América. “Estava trabalhando com o exército americano”, complementou confiante. Dissemos: “Agora o senhor está indo longe demais, doutor”. Ao que nos respondeu: “Por favor, não me entendam mal. Não estava combatendo ao lado deles. Deus me livre e guarde. Na verdade, trabalhei em uma delegação marroquina especial, que tinha como missão fazer uma salada para as forças norte-americanas”.

Conheça também: Beirute noir, com organização de Iman Humaydan

O conto da carochinha do doutor atraiu um público enorme, atento a cada palavra dele. O Médico de Insetos nos contou que o exército norte-americano era imensurável e, como não havia recipiente grande o bastante para a salada dos soldados, esvaziaram um lago imenso e trouxeram caminhões carregados de tomate, cebola e pimentão verde, tudo bem picado ao modo marroquino. Mangueiras de carros de bombeiro despejaram milhares de metros cúbicos de azeite na salada. Sal, cominho e pimenta-do-reino ficaram a cargo de helicópteros, que os espargiam lá do alto. “E o doutor, onde que entra em toda essa produção cinematográfica?” Ele nos lançou um olhar de reprovação e prosseguiu: “Meu papel era essencial. Com um bote de borracha, eu remava pelas laterais do lago enquanto me comunicava por rádio com os pilotos dos helicópteros. ‘Esta área precisa de mais sal’, eu dizia, e, assim que o helicóptero recebia minha ordem, despejava o sal; ‘está faltando pimenta-do-reino aqui’, e assim por diante”. Tudo isso para uma das atrações mais famosas da praça Jamaa al-Fna não confessar que tinha sumido por estar atrás das grades. Tudo isso para esquecer a prisão. Para não relembrar, ao fazer o relato, a humilhação passada na mão dos carcereiros durante a estadia na cadeia.

Viram como não é fácil?

O marraquexi é capaz de criar histórias cheias de cor para não encarar a escuridão da realidade e o amargor da vida. Para eles, o mais importante é proteger as narrativas, para preservar o espírito bem-humorado de Marraquexe. É uma missão muito difícil. Mesmo assim, tentei encontrar quem se arriscasse e pudesse embarcar nessa aventura.

Um dos grandes literatos da cidade negou logo ao primeiro contato. Foi categórico: “Quando precisar de uma história sobre Marraquexe, pode contar comigo. Posso escrever sobre os segredos, os sonhos e os escândalos da cidade, mas não sobre crimes”. Pensei que talvez ele tivesse razão. Afinal, esta cidade é famosa pelos escândalos e não pelos crimes. Os habitantes de Marraquexe não se cansam de relembrar essas histórias, devido à paixão que nutrem por elas. Eles espalham rumores empolgados, adicionando muito tempero aos fatos e aos acontecimentos. No entanto, rapidamente fingem esquecer as narrativas obscuras, a fim de que o bom humor da cidade permaneça intacto.

Pedi textos a contistas e romancistas de diferentes gerações. Todos ficaram empolgados de participar em um primeiro momento, mas depois vinham as perguntas: “Por que noir? E por que crime?”. Questões legítimas, não posso negar. Afinal de contas, não temos tradição no campo desse gênero literário no Marrocos. Nas décadas de regime autoritário, “difamar” eliminou a necessidade de “investigar”, e “falsas acusações” tomaram o lugar do “interrogatório”. Uma única sessão de tortura servia como prova cabal, entregue em uma bandeja de chumbo. Os marroquinos tiveram que esperar a morte do rei Hassan II, que governou o país com mão de ferro, para ler pela primeira vez um romance policial, intitulado Le Poisson Aveugle [O peixe cego], de Miludi Hamduchi, apenas um ano após a morte do monarca. A mesma coisa aconteceu com nossos vizinhos na Espanha, onde o primeiro romance policial só pôde ser publicado em 1975, após a morte do general Franco.

Desde 2000, o número de romances policiais escritos por marroquinos — em árabe ou francês — não chegou a trinta títulos. Não há uma coletânea de contos sequer, apenas romances. Exatamente por isso parecia que eu queria atrair os escritores da cidade para uma armadilha ou, na melhor das hipóteses, para uma terra desconhecida. Um verdadeiro desafio. Alguns recusaram o convite, porque não queriam se arriscar em um gênero literário que desconheciam. Outros tentaram, mas não conseguiram se aliar às sombras. Já um terceiro grupo se aventurou, e o resultado são os quinze contos desta antologia.

Os escritores tentaram criar enredos inspirados em crimes antigos, escondidos atrás dos portões da cidade e dos quais Marraquexe não fala, ou em histórias recentes, ocorridas devido às transformações que Marraquexe passou ao se tornar um dos destinos turísticos mais atraentes da África e do mundo árabe. É desse modo que a prostituição aparece ao lado de prisões arbitrárias, violência, assassinato e terrorismo. E pobreza, corrupção e adultério dividem espaço com contos sombrios inspirados na realidade de hospitais psiquiátricos.

São histórias que, apesar da variedade, permanecem enraizadas no solo marroquino. Dessa forma, os escritores almejaram — por meio de contos em árabe, francês e uma história em holandês — aproximar os leitores das diversidades linguística, cultural, religiosa e étnica da cidade. A Marraquexe árabe, amazigue, africana; mas também muçulmana, sem esquecer seu histórico Mellah, o tradicional bairro judeu. Essa que é a capital turística do reino, a cidade alegre e triste, cidade da vida simples, cidade conectada às capitais europeias mais importantes, com voos diários via seu aeroporto internacional, cidade de uma nova comunidade europeia, reduto de inverno de franceses aposentados e refúgio de imigrantes africanos da região subsaariana; cidade das noites cor de sangue e do turismo sexual, cidade de uma nova geração de criminosos. Todos esses elementos se destacam nos contos desta antologia, não importa quão sórdidos sejam. Os autores não criaram apenas histórias, mas tentaram escrever a própria Marraquexe. Experimentaram pintar coletivamente, cada um por meio de sua ficção, um retrato amplo e abrangente da cidade, sua tristeza, sua violência, sua tensão e suas trevas, mas sem deixar de lado o espírito alegre do local. O leitor é convidado a buscar a melancolia escondida detrás da máscara da alegria, a tragédia oculta no âmago da comédia.

As histórias se diversificam segundo a variedade de espaços da cidade. Adentramos a medina para um passeio pelas residências de Dar al-Bacha e Riad Zitun, pelos portões de Bab Dukkala a Bab Agmat, seguindo pelas vielas de Darb Dabachi e Darb Sidi Buluqat; tudo isso antes de sermos levados para além dos muros da Marraquexe antiga, chegando aos bairros novos, que cresceram após a independência e se transformaram em cinturões de pobreza — como é o caso de Sidi Yussuf Bin Ali —, ou ficaram sujeitos à expansão urbana e demográfica, adaptando-se para receber a classe média — como Massira e Saada. Outro conto nos leva ainda a Amarchich: o hospital psiquiátrico de Marraquexe, cujo bairro residencial vizinho compartilha com o centro médico o enorme fardo do nome.

No entanto, o lugar que não se pode evitar em Marraquexe é a praça Jamaa al-Fna. Ela aparece em quase todos os contos. Ou a história começa na Jamaa al-Fna ou termina nela. Mais cedo ou mais tarde, o leitor se vê numa encruzilhada formada por essas histórias sombrias, nesse lugar cheio de vida, considerado pela Unesco, em maio de 2001, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

Em outros momentos, porém, a praça é um espaço de alegria por excelência, que reúne cantores e dançarinos, contadores de histórias e charlatões, palhaços e ladrões de sonhos, domadores de macacos e encantadores de serpentes, além de quiromantes e tatuadoras de hena. À noite, esse mesmo lugar se converte no maior restaurante a céu aberto do mundo árabe. Quem ousaria seguir pistas obscuras em meio a uma praça consagrada à alegria e à beleza? Foi exatamente isso que fez desta antologia um verdadeiro desafio para mim, enquanto organizador, e para todos que participaram. Deixo para o leitor decidir se tivemos êxito na tarefa.

Yassin Adnan, na abertura do livro Marraquexe noir

Marraquexe, Marrocos

Junho de 2018

Yassin Adnan

Yassin Adnan nasceu em 1970 em Safi, Marrocos, mas cresceu em Marraquexe, onde vive até hoje. Yassin é mais conhecido por seu programa cultural semanal “Macharif”, na televisão marroquina. Ele publicou quatro coleções de poesia e quatro livros de contos, juntamente com um volume de não-ficção intitulado “Marrakech: Open Secrets”, em conjunto com Saad Sarhane. Seu romance “Hot Maroc”, que se passa em Marraquexe, foi indicado ao International Prize for Arabic Fiction.

Assine nossa Newsletter