A vasta obra do romancista libanês Rachid Al-Daif está apinhada de narradores cínicos. Seja em Prezado senhor Kawabata, seja em Learning English, seja neste E quem é Meryl Streep?, seus narradores caras de pau — que não raro têm o mesmo nome e a mesma profissão do autor — nada ficam a dever aos exemplares mais renomados do gênero. Escritor e cronista do desmoronamento do precário pacto nacional libanês, com todo o seu corolário de devastação material e moral, Rachid já não moraliza nem milita: sua prosa é sempre cínica, sarcástica e perversa, exatamente como deve ser em um país — o Líbano — onde tudo perdeu o sentido de forma mais impiedosa — sim, é possível! — do que no resto do planeta. Nesse sentido, sua escrita sempre enxuta e ágil, num árabe escorreito e desprovido de badulaques sintáticos e vocabulares, é também um sintoma da desesperança e da falta de horizontes daquele país que já foi ilusoriamente considerado a “Suíça do Oriente Médio”.

Seus narradores não raro apresentam um tom triunfalista que contradiz a estupidez das ações e das reflexões acerca dessas ações. Por exemplo: Rachid, o narrador deste primoroso romance, é movido por obsessões sexuais que o levam à obsessão pelo passado sexual da esposa, e daí a atitudes cuja vileza só é superada pela maneira mediante a qual são descritas. O cenário histórico maior do romance é, como não poderia deixar de ser, o da malfadada “Nova Ordem Mundial” de George Bush, a cujo anúncio ele, sintomática e alegoricamente, assiste no aparelho de tevê dos sogros.

Escrito primeiramente em 2001, no raiar deste século XXI, e já reeditado algumas vezes, este romance causou algum estupor ao ser lançado, sobretudo por causa da crueza das cenas sexuais nele descritas. Esqueça o sexo, porém: o forte do texto ácido de Rachid está no sarcasmo com que corrói o moralismo árabe, hipocrisia cuja ruína alegórica o presente evacuou, pondo em seu lugar a ruína real, efetiva e inamovível de um mundo em que, implodidas, as palavras se ressignificam como caos.

E quem é Meryl Streep? se apresenta ao público leitor de língua portuguesa na excelente tradução de Felipe Benjamin Francisco, feita diretamente do original, como deve ser, sempre.

Mamede Jarouche


Rachid Al-Daif nasceu na cidade de Ehden, em Zgharta, norte do Líbano, em 1945. É Doutor em Letras Modernas pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris III, e atuou como professor de língua e literatura árabes, bem como de escrita criativa, em instituições de ensino superior na França e no Líbano. Rachid Al-Daif publicou mais de 20 títulos, entre romances e poesia. Sua obra foi traduzida para mais de uma dezena de idiomas.


Felipe Benjamin Francisco nasceu em São Paulo, em 1988. Graduou-se em Letras – Árabe pela Universidade de São Paulo, onde obteve também os títulos de mestre e doutor. Sua pesquisa tem como foco os aspectos linguísticos do árabe e seus dialetos. É o tradutor de E quem é Meryl Streep?.

Mamede Jarouche

Mamede Jarouche é professor titular e livre-docente de literatura árabe na USP e tradutor de grandes clássicos árabes, dentre os quais se destaca o Livro das Mil e Uma Noites. Sua pesquisa está voltada às fontes árabes por meio do trabalho de fixação, edição e tradução de manuscritos de diferentes épocas da História árabe islâmica.

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