Desembarque é predestinação. Niqula Mitri herda o ofício do comércio e o amor por tecidos. Sua gente tem lugar, até uma guerra despedaçar cidade e entendimentos. Entre escombros de uma Beirute devastada, no porão de sua loja, Niqula reconstruirá, pela lembrança, as sagas de sua família e de sua amada Chamsa. 

Para o pai, Jirjis, os tempos prósperos são passado. Nos panos já não se adivinha as viagens das caravanas. Nostalgia é condenação. A mãe, Atena, repete histórias sempre diferentes. É de eterna estreia o seu cantar operístico de palavras apenas som.

Descendente de curdos — gente que reside na coragem e na liberdade —, há Chamsa. O corpo desabrochado torna-se veludo. Pétala e corola, ela é também Hatawi e é Suryach, neta de uma das donzelas do rei Salomão.

E há tecidos. Gaze para feridas do coração. Linho, dos lenços nas despedidas. Atlaz, cetim vulgar; atlas, seda verdadeira, que oferece lições: é a onda correndo na areia quente. Sem esperança de cura, em prazer e tormento, mulheres se apaixonam pela seda.

Na cidade-labirinto há que se nomear tudo novamente, com alfabeto de silêncio e grito. Não se separa o real da ilusão — mar é deserto, sonho é delírio, veneno é elixir. Conforme a mandrágora, o conhecimento está no segredo da utilidade; fugir para dentro da terra é elaborar-se escolhas. Pergunta Niqula: O que nos traz o inventário das ruínas, a não ser dor? Então colher amoras, improvisar uma vara de pesca, supor um jardim, contemplar o tecido banhado pela luz.

Nessa narrativa-tear, Barakat minucia urdidura e discurso. Da teia da aranha, da raiz da árvore, da pele que escuta na textura dos corpos. Não se controla o infinito das linhas: as histórias se encontram. O solo sulcado iguala o cesto que carrega comida. Fios do surgimento dos dias. Metáforas da artesania da lavra, da veste, da trama. Então é possível arar águas. Reescrever enredos sem ferir a terra que, ondulante, fará brotar peixes.

Sagrado pela inteligência dos instintos, o mundo nada mais é que um espelho. E as palavras, espelho do espelho. Permanecer bicho-da-seda, para que o fiar da história se complete. Não se entregue ao esquecimento. Conte. Escute. Histórias preciosas merecem ser lidas com um tipo de devoção.

Luci Collin


Conheça o livro: O arador das águas.


Hoda Barakat nasceu em Beirute, no Líbano, em 1952. Graduada em Literatura Francesa pela Universidade de Beirute, tem seis romances, duas peças, um livro de contos e um livro de memórias publicados. Em 2000, a autora recebeu a Medalha Naguib Mahfouz de Literatura por O arador das águas e, em 2019, ganhou o International Prize for Arabic Fiction por Correio noturno (Tabla, 2020). Hoda Barakat é considerada uma das vozes mais potentes da literatura contemporânea do Oriente Médio.


Safa Jubran nasceu em Marjeyoun, no Líbano, em 1962, e chegou ao Brasil em 1982. É professora livre-docente na Universidade de São Paulo, onde leciona língua e literatura árabes, desde 1992. Em 2019, recebeu, pelo conjunto da obra traduzida, o Sheikh Hamad Award for Translation and International Understanding. Traduziu para a Tabla Correio noturno, O arador das águas, ambos de Hoda Barakat, e Memória para o esquecimento, de Mahmud Darwich.

Luci Collin

Luci Collin é ficcionista, poeta e tradutora. Tem mais de 20 livros publicados entre os quais Querer falar (Finalista do Prêmio Oceanos 2015), A palavra algo (Prêmio Jabuti 2017) e Rosa que está (poesia, 2019). Luci Collin participou de diversas antologias nacionais e internacionais (EUA, Alemanha, França, Bélgica, Uruguai, Argentina, Peru e México).

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