Leia abaixo o texto escrito pela ficcionista, poeta e tradutora Luci Collin para a orelha do livro A queda do Imã, de Nawal El-Saadawi.

Olha pela janela do orfanato a “Criança de Deus”; é Bint-Allah, nascida numa sociedade governada pelo Imã do Hizb-Allah. Guardião da fé, ele se considera acima de todos. Ela encontra a amiga estuprada por um de seus “protetores”. Na infância de camponês pobre, ele andava com as mãos para trás a fim de esconder o buraco nas calças. Perseguida, procura a mãe, até ser capturada. Pergunta: “Por que vocês sempre deixam o criminoso livre e matam a vítima?”. O Imã tiraniza e silencia quem se opõe a seu controle. Ela recebe como resposta: “Você é filha do pecado”. Aguardemos o dia da Grande Festa.

Líder hipócrita de um país sem nome, o Imã personifica a brutalidade do poder autoritário; a bela órfã ilegítima, Bint-Allah, representa a condição das mulheres nos regimes repressivos e extremistas (sejam eles quais forem): párias a serem invariavelmente punidas. O Imã a acusará de adultério, condenando-a à morte por apedrejamento. Tensão das dualidades: claridade e escuridão, honra e vergonha, vitória e derrota, Paraíso e Inferno, o Imã e Bint-Allah. Ambos acreditam em sua ligação inata com Deus, revelada por meio de sonhos. A todas as pessoas se oferece a possibilidade de escolha entre amor e ódio; o ódio sempre usa máscaras e a face do Imã não poderá jamais ser a face de Deus.

A narrativa, elíptica e poética, onírica e simbólica, às vezes em primeira pessoa, às vezes em terceira, dá vertiginosos saltos e apresenta repetições que incessantemente rearticulam perspectivas: a do Imã com seu círculo formado pelo Grande Escritor, pelo Chefe da Segurança e pelo Guarda-Costas/duplo; a da anônima Esposa Legal do Imã, ocidental e ex-cristã; e a de Bint-Allah. A história revela um mundo tão aterrorizante e de ações tão hediondas que, ao longo da leitura, nos perguntamos: será tudo um pesadelo? Assim, a intensa e deliberada fragmentação da narrativa funciona como uma metáfora do caos de um estado religioso extremista e distópico, e reproduz a revolta não só da protagonista, mas de todos os seres que, como o discurso, acabam estilhaçados.

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