Por que você dança quando anda? Não sei qual impressão essa pergunta, título do novo romance de Abdouranham A. Waberi, gerou em seus novos leitores brasileiros. Sei que desde a capa da bela edição colorida da Tabla, o título nos convida ao bailar na poesia de Waberi. Onde há dança, há ritmo, há poesia. Vamos passo a passo. Fecho os olhos e ouço o eco de um sotaque francês esquecido nos cantos da memória. Da minha memória. Sei bem de onde vem Waberi, apesar de nunca ter posto os pés na África. Waberi vem de Djibuti, quase um lugarejo no mapa do mundo, na ponta do chifre africano, localização estratégica cobiçada por militares e piratas, entre sal, deserto, pessoas e mar, cores e elementos que rementem ao cúmulo do exotismo de uma paisagem que desafia o adjetivo de ser terrena. Caminho pelos desertos, areia e sal no golfo de Aden.

Ouço a poesia de Waberi … por que você dança quando anda? Desenho em minha mente a coreografia das caravanas nômades de seus ancestrais. Releio trechos de outros de seus romances e as memorias se misturam. Agora, as pernas de Aden se misturam ao ritmo da caravana. Adianto sem medo de comprometer o enredo, pois esse é bem costurado pelo autor, que o que vamos descobrir em “por que você anda quando dança” é o ritmo da escrita poética temperada pela memória de Abdhouramam A. Waberi. São espaços que se abrem para formar um palco contínuo entre continentes e oceanos, África-Europa-Américas por entre águas Atlânticos, Mediterrâneos, Aden. Surgem passagens de lágrimas. Surgem choros, dores e doenças, fraquezas e lutas de uma violência atroz chamada colonização. 

Convido Djib para o baile. Abreviatura “curta, lisa e eficaz” para Djibril, personagem de um outro romance, é ele que vem fazer as horas em minha memória como irmão mais velho de Aden, me apresentando a casa e os parentes. Com o saudosismo do retornado, o filho que fica muito tempo longe de casa, quando volta, abre a porta e continua vendo suas memórias. Djib descreve em Passage des Larmes

“Eles andavam. Poderíamos tê-los visto de longe, depois que esses nômades tinham atravessado o grande abismo aos pés do maciço do Goda. Aureolados por um véu de poeira, eles andavam, resvalando as rochas do tempo. Eles tinham escalado pelos planaltos rochosos, contornado o golfo. Eles rumaram ao sul. Os homens andavam a frente da caravana, os dromedários os seguiam no encalço. Depois vinham os meninos seguidos pelas meninas, os burros, os carneiros e as cabras. As crianças muito novas e as mulheres fechavam a caravana. De tempos em tempos, uma mão enxugava o suor que lhe marcava o rosto. Uma mão que ignorava, naquele instante, a fome e a sede. […] Nem por um instante, eles paravam. Só Deus sabia para qual fim caminhavam. Eles andavam sempre, suas silhuetas se esmorecendo sobre a linha do horizonte. Nada os separava de nós, os sedentários, senão alguns detalhes do vestuário. Senão esse hábito de fixar o longínquo ou de observar o voo de um condor.”       

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De forma geral, a escrita de Waberi traz aspectos poéticos que podem ser associados aos devaneios da memoria. Ao mostrar sua parcela de misticismo, aureolando seus caminhantes eternos, o escritor trata do aspecto mais tradicional de sua cultura, os nômades, aqueles que caminham só deus sabe para onde. Apenas caminham. Seguimos.

Afinal, por que você dança quando anda?

Me interesso exclusivamente às verdades criadas no espaço da ficção, onde todas as verdades são possíveis. No que concerne a escrita de Waberi, muitos questionamentos estão ligados ao imaginário nômade. Por exemplo, a poesia é particularmente bem cuidada nos textos do autor, uma influência dos contadores nômades. A preocupação com a memória e a com a transmissão da cultura estão igualmente presentes. Assim, poesia, memória e transmissão são asseguradas nas obras pela própria escrita, marcando uma forte dimensão metalinguística e metafórica. Os maiores personagens nômades se incarnam no eu lírico do escritor, o que é evidente sobretudo ao longo de passagens inteiras onde a poesia domina sobre a prosa, o que não é raro. 

Por outro lado, a obra de Waberi se situa num cruzamento cultural entre Djibuti, seu país natal, uma ex-côlonia já marcada pela mistura de culturas e os países colonizadores ocidentais, França, Estados Unidos etc. O personagem do exilado que reencontro em Aden, se desdobra, ainda mais explicitamente que os nômades, como tema principal da ficção de Waberi. Através dessas temáticas principais, nomadismo e exílio, o escritor que tece um fio condutor entre suas obras. Juntas, elas formam um conjunto que só pode ser compreendido quando a consideramos como a expressão de uma voz narrativa única, ressonante e presente em cada uma delas. Essa voz, pelo artifício dos diversos personagens, assim como por uma narrativa dita fragmentada, ressoa de fato como uma única entidade narrativa. Por esse mecanismo, os discursos, as declarações e as narrativas se misturam para construir uma situação que é global, aquela da migração num contexto mais amplo e do exilio nas suas particularidades, além de denunciar as mazelas do mecanismo de colonização. 

O discurso de cada personagem se junta numa espécie de consciência suprema que emana do conjunto da obra de Waberi. Essa consciência suprema serve para dar sentido ao exílio, não somente como uma experiência vivida pelos personagens, mas como uma situação complexa vivida por vários na época atual. Assumindo, nesse contexto, um lugar de reflexão universal.

Errantes e apátridas possuem características que completam o conceito principal de nômade: é aquele que erra, que vagabunda; que não tem vínculo, que não tem nacionalidade, ou ainda que viaja (que anda?) sem parar. Mas antes de tudo, errantes, apátridas ou nômades são descritos como sendo criadores. Ora, os criadores só podem ser os artistas, ou ter um dom divino, qualquer coisa que os aproxime senão do ato criador, do criador ele mesmo. Enquanto artistas, os nômades são apresentados como poetas. Sua característica divina deve ser assim associada à sua função de guia. Eles são aqueles que mostram o caminho a seguir para atravessar a existência.    

Aden, descendente de nômades, desenha os passos de sua dança que não tardam a se revelar. Os mancos, dançam. Os poetas escrevem no ritmo da dança nômade, assumindo através da escrita a função dos ancestrais nômades. A redenção se dá finalmente pela escrita, a magia da solução de um poeta. Num lugar, num tempo, numa cultura constantemente em movimento, quando não se pode andar, dançar é a solução do poeta. Afinal,

“Djibuti é, sabemos, um país de nômades e de poetas” (Waberi, Transit). 

É, finalmente, um prazer reencontrar essa voz, ultrapassando o sotaque da bela tradução, pois a poesia de Waberi é, de fato, universal. Seguimos a espera de mais Waberi. Afinal, por que andar e não dançar?

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Texto da pesquisadora Alice Peixoto

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