Leia o prefácio escrito pela professora Samira Adel Osman para o livro Sultanas esquecidas: mulheres chefes de Estado no Islã, da escritora e socióloga marroquina Fatima Mernissi.

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Mais que um prefácio, este texto pretende ser uma homenagem a Fatima Mernissi, autora pouco conhecida e pouco lida no Brasil. Até agora.

Pela ausência de conhecimento da intelectual e de suas obras é que me permito iniciar com uma breve nota biográfica. Começo pelo impacto de seu falecimento, aos 75 anos de idade, no dia 30 de novembro de 2015, e pelas justas homenagens que recebeu. Os obituários de jornais como New York Times, Guardian, Libération, The Arab Weekly, Morocco World News, de instituições como Muslim Institute, Oxford Research Encyclopedias e diversas notas biográficas a descreveram como fundadora do feminismo islâmico, figura importante e influente do feminismo árabe, inspiração e ícone do feminismo marroquino, voz eloquente da intelectualidade do mundo árabe, uma mulher intelectual, imponente e poderosa; ativista e revolucionária, livre-pensadora e humanista, a mais célebre escritora feminista dos tempos modernos, cujo legado inspirou e continuará inspirando gerações de homens e mulheres do Oriente e do Ocidente.

Seu importante papel como intelectual do mundo árabe e islâmico, e para além dele, foi reconhecido em vida. Em 2003, dividiu com Susan Sontag o Prêmio Príncipe das Astúrias das Letras pelos trabalhos dedicados ao diálogo entre culturas, tendo ambas desbancado 42 fortes candidaturas, como a do egípcio Nagib Mahfuz e a do peruano Alfredo Bryce. Em 2004, Mernissi recebeu o prêmio anual da Fundação Erasmus e, em 2013, integrou a lista da revista Arabian Business e a do Guardian como uma das cem mulheres mais influentes do mundo árabe e do mundo, respectivamente. Foi escolhida para o grupo de sábios da Comissão Europeia para o diálogo entre povos e culturas, atuou em diversos trabalhos para a Unesco e para a Organização Internacional do Trabalho da ONU sobre a condição das mulheres em seu país.

Após sua morte — lamentada por colegas, alunos, discípulos, admiradores —, as homenagens não cessaram. Cátedras Fatima Mernissi foram criadas na Universidade Muhammad V, onde lecionou, na Universidade Livre de Bruxelas e na Universidade Autônoma do México. A Mesa (Middle East Studies Association) criou o Fatima Mernissi Book Award para premiar estudos de gênero; o Instituto Africano de Sharjah criou a bolsa Fatima Mernissi e, em março de 2022, o Correio magrebino estampou um selo em sua homenagem.

Esse reconhecimento não foi por acaso, mas sim a coroação de uma trajetória de vida e de uma carreira construída em condições que poderiam ser consideradas adversas. Mernissi nasceu em 1940 na cidade de Fez, no Marrocos, em uma família de classe média e tradicional em que o acesso à educação das mulheres passava a ser possível para a sua geração. A mãe, as tias e as avós eram analfabetas e nunca ocuparam os bancos escolares, mas Mernissi pôde ter acesso à educação primária e secundária graças aos movimentos nacionalistas que criavam escolas destinadas à educação de meninas. Pôde também transgredir o espaço doméstico do harém e abdicar do uso do véu, no qual as mulheres de sua família ainda estavam enredadas. Para Mernissi, as mulheres analfabetas, confinadas e veladas das gerações anteriores a sua eram a força motriz e progressista que garantiria às gerações seguintes a ruptura com a ignorância, os muros e o véu.

Escolheu a área de sociologia e ciência política para sua formação superior, estudando na Universidade Muhammad V, onde se graduou, na Sorbonne, onde deu continuidade à pós-graduação, e na Universidade Brandeis, em Massachusetts, onde obteve o título de doutora em 1973. De volta a seu país, em 1974, assumiu como professora na Universidade Muhammad V em Rabat e mais tarde tornou-se pesquisadora do Institut Universitaire de la Recherche Scientifique. Ao longo de sua carreira, foi professora visitante em diferentes universidades pelo mundo. Questionada em uma entrevista por ter retornado para viver e atuar em seu país, apesar das limitações impostas às mulheres (de acordo com a visão do entrevistador), Mernissi respondeu de forma bem-humorada, mas muito perspicaz: no Marrocos, seu pensamento, suas ideias e suas obras seriam lidos, discutidos e levariam a uma polarização de opiniões; concordando ou discordando, o mais importante era o debate que seus textos e opiniões poderiam gerar em sua terra natal.

A socióloga nunca deixou de reafirmar o compromisso com suas origens e como estava umbilicalmente ligada e enraizada a essa sociedade da qual era parte e na qual militava por melhores condições, colaborando inclusive na fundação da Organização Marroquina de Direitos Humanos, defendendo posicionamentos sobre democracia, cidadania, igualdade de direitos, liberdade de pensamento e de expressão e a separação entre Estado e religião — temas polêmicos em sociedades árabes e muçulmanas — muito antes dos sopros da Primavera Árabe, deflagrada em 2010. Sua obra La Peur-modernité: conflit Islam démocratie, de 1992, publicado em inglês, em 1993, com o título Islam and Democracy: Fear of the Modern World, faz um mergulho histórico no mundo árabe e muçulmano no contexto da Guerra do Golfo para debater questões como democracia, poder político e sociedade civil e fazer uma crítica profunda aos governos autocráticos sustentados pelos movimentos fundamentalistas que, segundo a autora, estavam longe de coadunar com os ensinamentos do Profeta nos primórdios do Islã. Mernissi insistia que democracia, direitos humanos, dignidade, participação social e política não eram nem invenções nem exclusividades ocidentais; por isso, deveriam ser entendidos como parte da história e da tradição muçulmana, da herança religiosa e da identidade cultural, não havendo incompatibilidade entre islamismo e modernidade.

Mernissi pode ser considerada uma intelectual orgânica no sentido dado por Gramsci, já que seu engajamento e ativismo ultrapassavam os muros acadêmicos, voltando-se especialmente para a condição das mulheres em seu país e em outras partes do Magreb. Logo no início de sua carreira, juntou-se a um grupo de intelectuais marroquinos e fundou o La Caravane Civique, dedicado à alfabetização e educação das mulheres vivendo nas zonas rurais do Marrocos e da Tunísia. Seu trabalho para a Unesco e para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), intitulado “Mulheres e trabalho”, realizado nas décadas de 1970 e 1980, coletou dados, números e estatísticas, mas também narrativas de vida ímpares de mulheres marroquinas de diferentes idades, condições sociais, regiões geográficas, estilos de vida, versando sobre seu cotidiano e as dificuldades enfrentadas por elas. Desse rico material, onze histórias de mulheres de distintas classes sociais foram selecionadas para compor a obra Le Maroc raconté par ses femmes, publicado originalmente em 1983 e reeditado e revisto em 1991 com o título Le Monde n’est pas un harem, no qual a autora defendeu a possibilidade de convivência entre a tradição islâmica e o feminismo.

As relações de gênero no Islã, o papel da mulher nas sociedades árabes e a questão do véu, entre outros temas, são analisados por Mernissi como decorrentes de interpretações equivocadas feitas pelas autoridades religiosas dessas sociedades, que usaram a religião e seus textos sagrados, como o Alcorão e os Hadiths, para defender princípios culturais, patriarcais, machistas e misóginos que colocaram a mulher em condição de inferioridade em relação ao homem. Mernissi usa o mesmo procedimento: busca na religião e nos textos sagrados os fundamentos para defender a igualdade entre homens e mulheres, tratar da importância das mulheres nos primórdios do Islã e desconstruir o papel de submissão, passividade e obediência a que estariam relegadas as mulheres nas sociedades árabes e muçulmanas. A socióloga denunciava essa situação como desvio, acréscimo, distorção dos textos religiosos para adequá-los ao sistema patriarcal e aos governos autoritários do mundo contemporâneo. Esses foram os argumentos de sua tese de doutorado, publicada como livro em 1975 sob o título Beyond the Veil: Male-Female Dynamics in Modern Muslim Society; de Le Harem politique: le Prophète et les femmes, de 1987 (publicado em inglês, em 1991, com o título The Veil and the Male Elite: a Feminist Interpretation of Women’s Right in Islam); de Women’s Rebelion and Islamic Memory, de 1993; assim como de La Femme dans l’insconscient musulman, de 1982, publicado sob o pseudônimo Fatna Aït Sabbah, cuja autoria Mernissi só reivindicou ao final da vida.

Outros temas recorrentes na obra de Mernissi são o harém e a figura de Chahrazad. Escrito originalmente em inglês, Dreams of Trespass. Tales of a Harem Girlhood, de 1994, percorreu 28 países, tendo sido, até o momento, o único livro de Mernissi traduzido e publicado no Brasil, pela Companhia das Letras, sob o título Sonhos de transgressão: Minha vida de menina num harém, de 1996. Com elementos inspirados em sua vida na Fez da década de 1940, é a única obra ficcional da autora; mulheres como Yasmina, inspirada em sua avó, transcendem a imaginação e se apresentam como fortes, poderosas e transgressoras ao romper com a prisão física ou metafórica do harém.

“Nasci em 1940 num harém…”, é assim que começa a obra e foi o que bastou para que a repercussão ganhasse contornos imaginativos envolvendo sensualidade, sexualidade, orgias e fantasias que compuseram a visão distorcida do harém no Ocidente. Mernissi respondeu a essa percepção com outra obra publicada em 2000: Scheherazade Goes West, or: The European Harem (em 2001, o subtítulo foi substituído por Different Cultures, Different Harems). Além de dissecar o harém ocidental produzido pela pintura orientalista europeia e contrapô-lo ao harém muçulmano dos tempos de Harun al-Rachid, Mernissi faz uma provocação: se o harém é o símbolo da opressão feminina no Islã, o manequim 38 é o símbolo da opressão feminina no Ocidente, que dita normas e padrões de beleza, que violenta simbolicamente essas mulheres, que cria outras formas de preconceito. Confinadas, as mulheres muçulmanas podem ser fortes e poderosas; livres, as mulheres ocidentais podem ser oprimidas.

Mernissi lançou mão, em suas obras, da comparação entre as sociedades orientais e as ocidentais, não para hierarquizar ou criar dicotomias. A intenção era não só apontar igualdades e semelhanças, como também mostrar que problemas semelhantes afetavam as diferentes sociedades e culturas. Assim, as questões de gênero, o papel da mulher, o patriarcado, o machismo e a misoginia não seriam exclusividades das sociedades árabes muçulmanas; antes, seriam problemas que têm afetado as mulheres ao longo da história sexista da humanidade. Por isso, nas obras de Mernissi, a condição de inferioridade da mulher segue de mãos dadas com colonialismo, patriarcalismo, capitalismo e imperialismo, e essa luta deve ser encarada em uma solidariedade feminista transnacional na luta por igualdade, justiça social e dignidade humana. O termo feminismo ou qualquer outro (“mulherismo”, “nisaísmo”) também não era um problema para Mernissi, desde que o nome escolhido designasse a luta pelos direitos das mulheres. Sendo assim, podemos afirmar que Mernissi se definia como feminista, feminista árabe, feminista islâmica, já que ela nunca rompeu com sua origem nem com sua religião ao lutar pela causa das mulheres; por isso, em suas entrevistas ou falas públicas era comum que usasse expressões como “nós, mulheres”, “nós, árabes”, “nós, muçulmanas”. Também poderia ser “nós, mulheres árabes muçulmanas”, numa adição e não exclusão de termos, já que é possível ser mulher, ser árabe e ser muçulmana. E ser feminista e lutar pelos direitos das mulheres.

Por fim, resta tratar da obra que é o motivo deste prefácio. Assim como em Le Harem politique, no qual Mernissi mergulhou nos estudos dos Hadiths para investigar a participação feminina nos assuntos políticos nos primórdios do Islã, em Sultanes oubliées: femmes chefs d’État en Islam — publicado originalmente em francês em 1990 e em inglês em 1993 com o título The Forgotten Queens of Islam —, a socióloga dá uma guinada na história ao tratar do tema das mulheres a partir de um olhar que se volta para o passado islâmico para compreender uma polêmica do presente: o ano 1988, quando, no Paquistão, Benazir Bhutto se tornaria supostamente a primeira mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra em um Estado muçulmano da história contemporânea; supostamente porque, como Mernissi irá defender e comprovar ao longo de sua obra, as mulheres muçulmanas detiveram e ocuparam posições de poder e autoridade ao longo da história do Islã. Bhutto não era nem uma exceção, nem uma blasfêmia, como alegou seu principal opositor, Nawaz Charif. Sua eleição deveria ser compreendida a partir do papel que suas antepassadas muçulmanas ocuparam na esfera política do Império Árabe Islâmico, que se iniciou no século VII na Península Arábica e se espalhou por diferentes regiões, culturas e tradições ao longo dos séculos.

Dona de uma grande erudição, conhecedora da história e da historiografia muçulmanas, munida de um olhar analítico, metódico e interpretativo, Mernissi mergulha nas fontes islâmicas e, tal qual Chahrazad, narra a história do Islã de uma forma que enreda o leitor do começo ao fim. Nas páginas de Sultanas esquecidas, adentramos os palácios, as cortes, os haréns; acompanhamos as intrigas palacianas, as disputas de poder, as histórias de amor e as paixões arrebatadoras; compreendemos as mães que lutam por seus filhos e contra seus filhos; conhecemos mulheres fiéis ao marido ou ao amante, e fiéis sobretudo a si mesmas; escravizadas, cortesãs, rainhas, sultanas; árabes, persas, mongóis, mamelucas; poderosas, resistentes, resilientes. Mulheres e Muçulmanas e Sultanas.

É pela evidência histórica, comprovada pelas fontes, pelos fatos e pelos cargos ocupados por essas mulheres que Mernissi desconstrói os discursos religiosos feitos por homens para obliterar o papel das mulheres no Islã, como coadjuvantes, pouco importantes ou relegadas ao confinamento e ao esquecimento. Mais do que escrever a história do Islã a partir do protagonismo feminino, a obra de Mernissi é uma grande contribuição para a escrita da história, seja ela de qualquer lugar, época ou religião. Mernissi defendia que se escrevesse sobre as mulheres na história e sobre a história das mulheres, mas sobretudo que as mulheres escrevessem a história porque, para ela, o maior equívoco foi permitir que a história, a memória, o coletivo e o espaço da produção do conhecimento fossem dominados por homens.

Benazir Bhutto foi destituída do cargo dois anos depois de eleita, sendo presa e exilada sob acusação de corrupção. Em 2007, em pré-campanha, foi assassinada. No Brasil, Dilma Rousseff sofreu impeachment em 2016, também acusada de corrupção, e o que não faltou em seu processo foram manifestações de machismo e misoginia, motivos que podem ser travestidos de tradição religiosa inventada ou de falsos discursos moralistas. Assim, o esquecimento e apagamento do papel das mulheres na história não são um problema de fé ou de religião, mas antes de um mundo que continua sendo comandado por homens e onde as mulheres ainda devem continuar lutando pela vida e para existir.

Finalmente, termino este prefácio contando um episódio ocorrido em minhas primeiras turmas de História da Ásia na Unifesp. Em uma aula, eu comentava algo sobre a questão das mulheres e o feminismo islâmico, quando uma aluna me perguntou, espantada: “Existe um feminismo islâmico?” e, quase incrédula, pediu que eu citasse algum nome. Automaticamente pensei em autoras muçulmanas publicadas no Brasil: Nawal El-Saadawi e evidentemente Fatima Mernissi, acrescentando que eram mulheres, muçulmanas, feministas, mas pouco lidas e pouco publicadas em nosso país.

A publicação de Sultanas esquecidas poderá finalmente preencher um trecho no pontilhado dessa lacuna. Essa obra, traduzida para o português, permitirá às leitoras e aos leitores no Brasil conhecer sobre o feminismo islâmico — que existe! — e sobre Fatima Mernissi, que ajudou a construir esse movimento emancipatório como um importante legado para o papel das mulheres no Brasil, no Islã e no mundo.

Samira Osman

Samira Osman é professora de história da Ásia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e escreveu Imigração árabe no Brasil (Xamã).

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