Ele costumava desenhar para mim, sobre uma folha branca, um ponto escuro, mínimo e final. Eu me distraía contemplando o rastro deixado por ele, aquela ínfima marca de eloquência, aquela concisão para expressar o que não se diz. Quantas vezes desenhei ao redor do ínfimo ponto uma coroa e em seguida pequenas pétalas, uma ao lado da outra, até completar o desenho, que se tornava uma rosa, logo outra e mais outra. Observava a folha cheia de flores, enquanto transbordava de felicidade, pois finalmente alguém havia deixado um buquê de rosas sobre minha mesa. 

Amar alguém que fala pouco dá espaço para saciar o desejo de falar muito. É como se, satisfeito, ele quisesse deixar um resto do sanduíche para você. Você trava diálogos completamente imaginários, você pergunta e você mesmo responde, lendo no silêncio dele um sinal de aprovação. Então você conclui, se alonga e diz mais. Um dia, porém, ele sairá desse silêncio, quando você já tiver esquecido como era sua voz e então vai ouvi-lo murmurar: “Temo que tenha ocorrido um mal-entendido”.

Você pode “acontecer” pela primeira vez para uma pessoa, mas depois disso – ao passo que a idade chega –, fica mais difícil experimentar novamente aquela sensação ímpar de que você é capaz de fazer com que os outros revivam suas primeiras experiências.

Você fica bem com a ideia de que se tornou uma variável dentre tantas e que muito aconteceu antes de você, passando a ser difícil sair de uma imagem muito mais complexa da qual costumava fazer parte. Nesse mesmo sistema, também passa a ser difícil para os outros se revelarem, na sua frente, como algum milagre extraordinário. 

Apesar disso tudo, é possível que um novo encontro ocorra em cima de eventos e pessoas que já aconteceram. Seria um instante singular exatamente por esse motivo. Pois, agora, você estaria pronto para olhar para trás com a sensação de que havia alguém que abriu o caminho no meio de toda essa multidão para lhe surpreender outra vez. 

Fiz uma aposta com o “mau momento” de que conseguiria vencê-lo todas as vezes. Pois gosto disso: me colocar em provas difíceis, encontrando uma pessoa qualquer que esteja doente, em pedaços, ou que esteja se preparando para viajar, ou ainda que tenha acabado de ser vencida pelo tédio. Ao que me parece, esqueci que vivia neste canto do mundo, onde as horas são sempre duras. Certa vez alguém me disse: “você me salvou”; já um outro: “você foi algo bonito que aconteceu num momento difícil”; e houve ainda quem dissesse: “você fez o tempo parecer menos pesado”. No geral, foi loucura supor que eu conseguiria ganhar uma aposta desse tipo, afinal não se chamaria “mau momento” se contorná-lo fosse fácil.

A memória que tenho do amor passou a se assemelhar, com o tempo, a um polvo com milhares de membros. Essa memória seletiva preservou aquilo que me importava de todas as histórias que terminaram, assim como gestos e olhares difíceis de se esquecer; ou ainda frases ditas num dado contexto que continuaram ressoando na memória. Com o tempo, os limites se perderam e se confundiram entre quem disse isso e quem fez aquilo. As lembranças foram retiradas de contexto sem que fossem devolvidas a seus donos, passando a se assemelhar mais a uma grande colagem feita a partir de recortes de jornais, cartões postais, fotos e desenhos inacabados: tudo embaralhado numa parede que só eu vejo. Assim o amor que eu busco passou a ter a cara desse polvo. 

Você perdeu a chance de ser o amor da minha vida – e isso não faz parte da minha paixão por você –, você perdeu apenas que eu lhe dissesse: “Foi um prazer, um verdadeiro prazer tê-lo conhecido”; perdeu a minha curiosidade de descobrir “como você se tornou o que é?”, motivada pelo desejo avassalador de saber e da paciência para aprender. Era como se eu estivesse em um laboratório ansiosa para saber o que vai dar a mistura de você comigo, sua rotina misturada com a minha, as histórias da sua infância com as minhas, sua preocupação sutil misturada com meus ciclos de pânico. Sabe o que você deixou passar também? Deixou de ter um amor, no qual eu não me fingiria indiferente para que se interessasse por mim, mas ao contrário, no qual eu diria francamente que estou interessada em você ao ser assim. Perdeu de me ver abrindo mão de tentar imitar sua mãe ou do meu desejo de que você fizesse o papel do meu pai. Ao invés disso, sentaríamos eu e você rindo de todos os pais, mães, avôs e avós que nos jogaram neste mundo tentando nos moldar à sua imagem. Conseguimos escapar disso de certa forma. O prejuízo maior, no entanto, foi você ter deixado de ser assim, sozinho, e ter retirado de mim a oportunidade de também estar só.

Tradução de Felipe Benjamin

*Texto originalmente publicado em 24/09/2020 na revista palestina Romman – “romã” em português –, dedicada a temas de cultura, literatura e política, e editada por Saleem Albeik.

Publicação original: https://rommanmag.com/view/posts/postDetails?id=5871&page=1

Nour Abo Farraj

Nour Abo Farraj é jornalista síria e pesquisadora independente. Atualmente, reside em Damasco, colaborando com a revista palestina Romman e diversos meios de comunicação árabes, como o jornal libanês Al Safir.

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