Nesses vários anos de pesquisa sobre as Mil e uma noites, eu tenho observado certas dúvidas de leitores brasileiros acerca da história dessa obra e, mesmo, alguns equívocos pontuais em publicações digitais e impressas em torno de sua constituição, de seus tradutores e de suas traduções. Nada mais natural: algumas dessas questões ficaram tempos e tempos comigo até encontrar uma trilha que me levasse ao contento de uma resposta satisfatória, à tranquilidade de uma resposta definitiva ou à perturbação de nenhuma resposta.
Com as Mil e uma noites, obra tecida pelo fio dos séculos, é assim mesmo, não podemos ter pressa para obter respostas. Ao nos debruçarmos sobre suas histórias e, também, sobre as histórias de suas histórias, nós vivenciamos em nossa interioridade uma experiência singular com o fluxo do tempo, o que nos leva a flertar com a paciência e a perseverança de Penélope, porque as Mil e uma noites, como sugere seu próprio título, não conhecem a pressa. Arrisco dizer que esse tempo caprichoso das Noites, como são chamadas pelos mais íntimos, seja, talvez, um de seus feitiços que encantam e capturam a atenção dos seus mais variados leitores, desde os que buscam uma fruição momentânea até os mais assíduos, que fazem delas o livro de sua vida.
Seguindo pela senda das Noites, divido com os leitores algumas das respostas dessas questões que o tempo da pesquisa tem me legado:
- “Aladim, ou a lâmpada maravilhosa” e “Ali Babá e os quarenta ladrões” são ou não são histórias das Mil e uma noites?
A minha resposta é sim, mas o motivo de sê-lo não é exatamente como se poderia esperar. Essas histórias que, curiosamente, são as mais célebres da obra foram inseridas por Antoine Galland, o primeiro tradutor das Mil e uma noites, e, até o momento, não foram encontradas em nenhum manuscrito árabe anterior a 1712 e 1717, quando foram respectivamente publicadas pela primeira vez.
Grosso modo, essa ausência de manuscritos autênticos, ou seja, anteriores ao início do século XVIII, dividiu opiniões entre pesquisadores e tradutores: uns legitimavam os contos de “Aladim” e de “Ali Babá” pelo seu lugar de destaque na história da constituição do texto das Mil e uma noites, outros os deslegitimavam por não constarem de seus manuscritos e outros, ainda, querendo agradar a gregos e troianos, os legitimavam com ressalvas, posição esta, aliás, cristalizada na expressão “contos órfãos”, cunhada por Mia Gerhardt em 1963.
Porém, se olharmos por outra perspectiva, veremos que de órfãos eles não têm nada: Antoine Galland não apenas deixou claro em seu diário pessoal que ele próprio trabalhara na escrita desses contos, como também registrara que sua fonte fora um jovem maronita de Alepo chamado Ḥannā Diyāb. Mais recentemente, graças à descoberta do diário de viagem desse mesmo Ḥannā, tivemos a certeza de que ele, de fato, contara algumas histórias da tradição oral síria a Galland. Portanto, os contos de “Aladim” e de “Ali Babá” têm “paternidade”, eles são fruto da colaboração entre o sírio Ḥannā Diyāb e o francês Antoine Galland, e até que se descubra algum manuscrito autêntico, o maronita de Alepo continua sendo a fonte mais antiga de que se tem notícia.
Como vivemos tempos de posicionamento, registro que, seguindo a mesma trilha de outros pesquisadores como Nikita Elisséeff e Aboubakr Chraïbi, “Aladim” e “Ali Babá” fazem, sim, parte das Mil e uma noites, pois a história da constituição do texto, em seus diversos lugares e épocas, não pode ser ignorada.
Para finalizar essa questão, é bom lembrar que, se por um lado, alguns pesquisadores e tradutores das Noites chegaram a relativizar a importância dessas histórias pelo fato de não provirem de um manuscrito árabe autêntico, por outro, seus inúmeros leitores, no fio de séculos, não titubearam em considerar “Aladim, ou a lâmpada maravilhosa” e “Ali Babá e os quarenta ladrões” como parte inseparável dessa obra. Vida longa às boas histórias! Afinal, não é esse o mote das Mil e uma noites?
- E o tapete mágico, onde é que ele aparece?
Ele está presente em uma única narrativa das Mil e uma noites: “A história do príncipe Aḥmad e da fada Parī-Bānū”, também fruto da parceria Ḥannā-Galland; portanto, diferentemente da história contada pela Disney, não há nenhum tapete mágico no conto de “Aladim”.
Poderíamos então pensar: se o tapete mágico aparece apenas na “História do príncipe Ahmad”, ele seria uma invenção de Ḥannā ou de Galland? Não é o caso. Além de figurar em contos folclóricos russos, esse interessante objeto mágico também está presente em registros sobre o rei Salomão, seja na tradição judaica, seja na tradição islâmica, como nos conta o exegeta muçulmano de origem persa Al-Ṭabarī (m. 956), em sua célebre História dos profetas e dos reis, de onde extraio um pequeno trecho e com o qual findo esta questão:
Conta-se que Salomão tinha um longo tapete de quinhentos parasangas. Cada vez que se estendia esse tapete, colocavam-se sobre ele trezentos tronos de ouro e de prata, e Salomão ordenava aos pássaros que unissem suas asas para abrigá-lo, juntamente com seu séquito, dos raios do sol. […] Depois, ele ordenava ao vento para levantar esse tapete pelos ares, com tudo o que ali se encontrava, a uma distância de uma milha, às vezes mais, às vezes menos. Em todos os lugares por onde passava, ele cobria o sol em uma extensão de cem parasangas, e os olhos dos homens ficavam inteiramente voltados a ele. Ele permanecia certo tempo em Damasco e certo tempo em Jerusalém; pela manhã ele ficava em uma cidade e, durante a tarde, em outra, como é relatado pelo Alcorão: “Percorria um mês pela manhã, e um mês durante a tarde”.
- Antoine Galland ou Jean Antoine Galland?
O nome do primeiro tradutor adquire um caráter digno de Mil e uma noites em nossas terras sul-americanas. Nos últimos anos, tenho visto em algumas publicações aqui no Brasil o acréscimo de “Jean” ao nome de Antoine Galland, algo que jamais encontrei nos textos dos vários pesquisadores de sua vida e de sua obra, franceses ou não.
Ainda desconfiada de algum deslize por parte de seus biógrafos, pesquisei referências em publicações de sua cidade natal, Rollot, foi quando encontrei a fotografia de um busto seu, com uma placa onde se lê, em letras douradas, “Antoine Galland”. Sempre, apenas, Antoine Galland.
Outro dia, nesses tempos de reclusão forçada pela pandemia, fui reler, despretensiosamente, “Os tradutores d’As mil e uma noites”, de Jorge Luis Borges. Eureca! Lá estava: “Jean Antoine Galland era um arabista francês” etc. etc.
Encontrar fontes é mesmo muito interessante: concluí, então, que esse acréscimo de “Jean” aqui no Brasil provavelmente se devia a Jorge Luis Borges, ilustre leitor das Mil e uma noites em nosso continente e, por isso, seguido e copiado. Ainda não descobri quais foram as fontes de Borges para tal grafia; mas, para todos os efeitos, penso ser mais acertado, neste caso, dar a Borges o que é de Borges, entregando-nos apenas ao deleite de ler nesse texto singular seu afeto e sua admiração pelas Noites. Sigamos então e tão-só com “Antoine Galland”.
- Um livro ou muitos livros de nome Mil e uma noites?
Uma multiplicidade de manuscritos, edições e traduções divergentes entre si, assim são as Mil e uma noites, uma obra no plural, imensa, que realmente se concretiza em muitos e variados livros. Considerando a história do seu texto – suas origens, suas transformações, sua evolução em vários lugares e ao longo de quase mil anos (século IX ao XIX) –, é muito difícil chegar a um consenso quanto à supremacia de um manuscrito ou de uma edição – em árabe ou não, ou tradução. Se, para pesquisadores e tradutores, qualquer escolha implica significativas, e por vezes incômodas, concessões, para os leitores não especializados, ao contrário, resta a feliz liberdade de se guiar simplesmente pelas preferências pessoais.
Para os limites de nossa existência, as Mil e uma noites são, de fato, infinitas. Escolher um livro, um texto, significa abrir mão de muitos e muitos outros. Em uma única imagem, como nos ensina Borges, as Mil e uma noites são um “livro de areia”, de eterno recomeço e de leitura infinita, sem princípio ou fim.
Christiane Damien
Christiane Damien é doutora em Letras pela USP com estágio de pesquisa no INALCO/Paris e pesquisadora do Grupo de Tradução e Pesquisa de Filosofia Árabe e História do Pensamento USP/CNPq. É autora de Na senda das Noites (Ateliê) e coautora da obra didática Português contemporâneo: diálogo, reflexão e uso (Atual).