– Alô, bonjour madame, lahza, please!
!آلو، بونجور مدام، لحظة بليز –
Pode não ser tarefa fácil identificar a origem e a língua do enunciador da frase acima. Mas posso assegurar que essa frase soaria perfeitamente natural e compreensível a qualquer libanês falante de árabe. O trecho é parte de um diálogo com uma das personagens do romance E quem é Meryl Streep! – de Rachid Daif –, uma secretária de uma clínica ginecológica em Beirute.
Não é de se estranhar, no mundo árabe de hoje, a utilização de mais de um idioma nas interações orais, reflexo de bilinguismo ou mesmo da ocorrência de estrangeirismos em meio ao árabe falado ou dialetal – como no caso acima. Ao ouvir alguém falando árabe, é comum sermos surpreendidos com empréstimos do inglês e do francês – como nos dialetos árabes de Síria, Líbano ou Egito–, assim como do italiano no árabe da Líbia, ou ainda do espanhol no árabe falado em Marrocos.
Esse contato linguístico, grosso modo, remonta a séculos de interação no Mediterrâneo, mas se intensificou com a partilha do Oriente Médio e Norte da África por potências europeias, que estabeleceram protetorados na região entre os séculos XIX e XX. Mesmo após a independência dos 22 países árabes, a língua cotidiana nessas localidades continua reunindo uma infinidade de dialetos árabes, que se alternam com as línguas dos antigos dominadores, e toda essa realidade linguística, por vezes, acaba infiltrando-se para dentro dos textos literários.
Os vários “árabes”
Fala-se muito em árabe marroquino, árabe egípcio, árabe sírio, árabe libanês, etc. Esses termos, de natureza ad hoc, costumam ser utilizados geralmente para se referir à língua árabe de um país inteiro, quando na realidade correspondem ao árabe falado em capitais ou grandes centros, como Casablanca, Cairo, Damasco ou Beirute. Essas variedades urbanas são dotadas de um certo prestígio local, logo são utilizadas frequentemente na grande mídia. Esse árabe dialetal urbano é o que você provavelmente encontrará ao adquirir um livro didático de “árabe coloquial” para estrangeiros.
Na realidade, essas categorias são bastante redutoras, uma vez que cada país apresenta uma diversidade dialetal que vai muito além daquela falada na cidade grande. Podemos encontrar dialetos diferentes nos deslocando de um vilarejo a outro, a poucos quilômetros de distância, ou mesmo em comunidades religiosas distintas. Por exemplo, certos traços podem determinar se um falante de árabe marroquino é judeu ou muçulmano.
Na prática, o dialeto é a verdadeira língua materna de qualquer falante de árabe, predominando na oralidade. Isso significa também que é adquirido no meio familiar como qualquer língua natural e não na escola. Por essa razão, e por seu potencial comunicativo, o árabe dialetal é aquele que aparece com maior frequência em filmes, canções e programas de televisão.
No que se refere à escrita, o árabe dialetal possui um uso ainda muito restrito – fato que vem mudando com as redes sociais –, de modo que quase tudo que é publicado utiliza outra variedade da língua: o árabe fusha (pronuncia-se fus-ha), conhecido como árabe clássico ou padrão.
Mas qual é o árabe da literatura?
O árabe clássico consiste na língua da prosa e da poesia árabes desde pelo menos o século VIII d.C. Não é à toa que um leitor da língua consiga acessar – com variados graus de dificuldade – desde o Alcorão, passando pela profícua produção literária, científica e filosófica da Idade Média, até chegar à mídia impressa e à literatura de nossos dias. São 13 séculos unidos por uma só língua.
Os autores árabes modernos empregam, desde o séc. XIX, esse mesmo árabe clássico, mas agora na sua forma simplificada. Isso significa que essa língua apresenta uma sintaxe mais próxima daquela do árabe dialetal falado e um léxico mais adaptado à modernidade.
Essa renovação da língua árabe escrita aconteceu exatamente pela experiência de tradução, sobretudo, do inglês e do francês para o árabe durante a Nahda, o Renascimento literário e cultural árabe. Muitos argumentam que esse contato com a literatura europeia foi fator determinante para que se introduzissem gêneros estrangeiros ao universo literário árabe, tais como o conto e o romance.
A literatura árabe moderna, o árabe clássico e o dialeto
A grande maioria dos romances são escritos nesse árabe (clássico) mais maleável, porém isso não impede que os textos modernos acolham, ainda que em menor medida, o árabe dialetal e mesmo outras línguas. Já quanto à função do uso desses variados códigos na fala do narrador ou dos personagens, tudo depende do estilo do autor e das especificidades de cada obra.
É bastante comum que se recorra aos dialetos nos diálogos dos textos em prosa, a fim de produzir um efeito de verossimilhança na tentativa de representar situações de comunicação oral na literatura. Haja vista que existem muitos dialetos, cada autor pode optar por utilizar em seu texto aquele que mais se adapte ao perfil do personagem.
Outras vezes, em textos mais contemporâneos, a linha entre o clássico e o dialetal é bastante tênue, sobretudo na voz do narrador. Regionalismos para objetos, como no libanês: abajur “cortina persiana” ou takhet “cama”; podem passar despercebidos por um leitor sírio, no meio do árabe clássico, mas podem soar estranhos a um marroquino.
A coisa pode ficar ainda mais complexa quando o próprio título da obra está em dialeto, o que é pouco comum, mas de vez em quando acontece, como em Tistifil Meryl Streep, do libanês Rachid Daif, causando certa estranheza ao leitor árabe, mas conferindo ao romance uma cor especial.
Felipe Benjamin
Felipe Benjamin Francisco é professor e tradutor do árabe. Graduou-se em Letras – Árabe pela Universidade de São Paulo, onde obteve os títulos de mestre e doutor pelo programa de Estudos Judaicos e Árabes. Suas publicações científicas abordam, sobretudo, os aspectos linguísticos do árabe e seus dialetos. Também é membro fundador do grupo Tarjama – Escola de tradutores de literatura árabe moderna (USP), sob coordenação de Safa Jubran. Nos últimos anos, para além da docência e da pesquisa, tem atuado como tradutor e intérprete comunitário árabe-português no contexto de refúgio.