O dia 25 de março foi instituído como o Dia Nacional da Comunidade Árabe no Brasil, data escolhida em referência à região central da cidade de São Paulo com forte presença de sírios e libaneses chegados ao país no final do século XIX e cujo fluxo mantém-se constante à medida em que novos acontecimentos no país de origem impulsionam outras levas de migrantes para além mar. Pelas diferentes regiões do Brasil, ainda que mais concentrados em São Paulo, temos referências a clubes, hospitais, sociedades de benemerência com o adjetivo pátrio, sírio. Ao mesmo tempo, a Guerra Civil em curso na Síria desde 2011, renova a percepção dessa presença no país, pelos empreendimentos gastronômicos, pelas matérias jornalísticas e mesmo na telenovela, ainda principal produto de entretenimento em nosso país, que une a comida, a guerra e sheiks assassinos no mesmo imaginário que tem sido reeditado sobre o Oriente e mais especificamente sobre o Oriente árabe.
Ainda que sírios e libaneses tenham querido romper a confusão, a hifenização e mesmo a rotulação genérica que os têm identificado como árabes e turcos, tais generalizações podem ser compreendidas por um viés histórico mais acurado sobre a região. Desde 1946, o nome oficial do país é República Árabe da Síria e sua capital é Damasco, mas os termos Síria e Damasco são muito mais longevos do que este ano que faz referência à independência do domínio francês no contexto do final da Segunda Guerra Mundial.
Uma breve contextualização da história da Síria
Para não nos alongarmos muito nessa história, é importante apontar que Síria (em árabe, Suryya) era uma denominação dada à região do Levante (em árabe, Sham), o que englobaria as atuais regiões da Síria, do Líbano, da Palestina e parte do Iraque. Situada em localização estratégica, foi ocupada e conquistada sucessivamente por egípcios, persas, macedônios, romanos. Foi nessa região que floresceu o reino de Palmira, cuja rainha, Zenóbia, desafiou o poderio de Roma no século III.
Até a conquista árabe em 636, foi parte do Império Bizantino e uma das sedes do patriarcado cristão oriental. Sob o domínio islâmico, foi arabizada e, na disputa de poder pelo domínio do califado, passou de província para sede do Califado Omíada (661-750) tendo Damasco como sua capital. Desse período destacam-se a transformação da Igreja dedicada a São João Batista na Grande Mesquita Omíada de Damasco, na qual supostamente encontra-se a cabeça do santo decapitado, segundo a tradição, por Herodes para atender a Salomé. De acordo com a tradição islâmica será a partir deste lugar que Jesus retornará. Num anexo ao templo, encontra-se o Mausoléu de Saladino, chefe militar de origem curda que foi sultão do Egito e de Damasco, e que se notabilizou pela retomada de Jerusalém dos cruzados.
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Damasco e a Síria sucumbiram em importância e esplendor quando os abássidas derrotaram a dinastia omíada e instituíram o Califado Abássida (750-1258), cuja sede foi transferida para Bagdá em 766. Como afirmou o historiador Ibn Khaldun, o declínio e a queda de um reino aniquila a prosperidade de sua sede, e isso aconteceu com a Síria e com Damasco quando os abássidas a preteriram em favor da nova capital. Incorporada aos domínios do Império Turco Otomano em 1516, se a Síria e Damasco não retornaram ao período de esplendor ao menos passaram a ter posição estratégica nas rotas de peregrinação para Meca, tornando-se a maior no mundo islâmico.
Na crise otomana do final do século XIX e com a partilha antecipada do Oriente Médio entre a Inglaterra e a França pelo Acordo Sykes-Picot de 1916, a Síria e o Líbano (ou a Grande Síria) passaram ao domínio colonial francês, situação que perdurou até 1946 com a independência alcançada. Engajada, desde sua emancipação, com o nacionalismo árabe a Síria tornou-se República Árabe da Síria para, entre 1958-1961, viver com o Egito o sonho efêmero da República Árabe Unida. Disputa de poder entre socialistas, comunistas e nacionalistas culminou na chegada ao poder do partido Baath (do árabe, ressurreição) e do engajamento na causa palestina, o que levou à perda das colinas de Golã na Guerra de 1967 até hoje sob domínio israelense.
Na década de 1970, a instabilidade política do país seria sufocada com o Golpe Militar de Hafez al-Assad, que se manteve no poder até sua morte no ano 2000, tendo sido sucedido por seu segundo filho, o médico oftalmologista Bashar al-Assad. A mais de duas décadas no poder, Assad enfrenta a longa guerra civil deflagrada em 2011 como decorrência da Primavera Árabe, iniciada em dezembro de 2010 na Tunísia, a chama do pavio que se espalhou pelo norte da África, Levante e Península Arábica.
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Dentre as explicações possíveis para o conflito e sua duração, estão os interesses geopolíticos na região envolvendo os interesses dos Estados Unidos, países europeus e Rússia, bem como das disputas locais envolvendo a hegemonia da Turquia, do Irã e da Arábia Saudita na região. Do ponto de vista interno, destacam-se o uso da estrutura do Estado para fins pessoais e familiares; as reformas liberais que favoreceram os mesmos grupos no poder, sobretudo a classe média urbana de Damasco; o viés religioso no qual uma minoria (alauíta) domina uma maioria (sunita), além de cristãos e drusos; repressão a grupos separatistas como curdos. Tudo isso expresso em um Estado controlador, predatório e repressivo, que viu crescer protestos de civis, paramilitares, militares desertores e ascender partidos nacionalistas e jihadistas, reavivando o Islã político. O que deu espaço para a ascensão, em 2013, do Estado Islâmico do Iraque e do Levante ou Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS ou ISIL, em inglês; DAESH ou DAISH al-Daula al-Islamiya al-Iraq wa Sham, em árabe) e culminou em 2014 na conquista de Mossul e na declaração da criação do Califado Islâmico com a ocupação de regiões da Síria imersa na Guerra Civil.
Para a ONU a Guerra Civil da Síria e o drama dos refugiados já pode ser considerada a maior tragédia humanitária desde a Segunda Guerra Mundial e o dados numéricos corroboram essa afirmação: dos 20 milhões de habitantes no início do conflito, contabilizam-se 6 milhões de deslocados dentro do país; 4 a 5 milhões de refugiados espalhados pelo Líbano, Jordânia, Turquia, e países da Europa, e mesmo no Brasil que contabilizou oficialmente 3 mil refugiados sírios.
O auge dessa situação foi a chamada Crise dos refugiados de 2015, cuja símbolo emblemático são o rosto de duas crianças: Alan Kurdi (do árabe, o curdo) que não sobreviveu às águas do mar Egeu; e Omar Daqneesh que, resgatado dos bombardeios de Alepo, permaneceu paralisado sob sangue, poeira e silêncio. O recente terremoto que devastou a Turquia e a Síria nesse mal iniciado 2023 deixou tantas outras crianças soterradas, paralisadas, abandonadas, silenciadas. Momentaneamente ou para sempre.
Samira Osman
Samira Osman é professora de história da Ásia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e escreveu Imigração árabe no Brasil (Xamã).