Nunca vou deixar de repetir que a cama é o lugar onde se confrontam, frequentemente com violência, o Ocidente moderno e o Oriente “tradicional”.
Por “cama” entendo os costumes e os valores morais.
Os efeitos do choque da modernidade provocados pela conquista do Egito por Napoleão Bonaparte estão continuamente se propagando e se aprofundando no mundo árabe. Esses efeitos fizeram com que uma dialética de fascinação e de repulsa se instalasse entre os árabes com relação ao Ocidente.
Desde então, o Ocidente é o modelo a ser seguido e o perigo a ser evitado. Ele continua a seduzir e a amedrontar.
O Ocidente está em nós. Ele não é o Outro como alguns querem que acreditemos. A maioria esmagadora dos árabes não faz distinção – no que concerne muitos dos nossos valores, práticas e atitudes – entre o que vem do Ocidente e o que vem de nós mesmos. Nesse sentido, estamos na modernidade, mas do nosso jeito. Não há uma única modernidade, mas sim várias.
Alguns valores ocidentais são admitidos explicitamente por todos, ao passo que outros – que competem sobretudo ao âmbito dos costumes e são entendidos no sentido de conduta moral – acabam sendo rejeitados explicitamente por quase todo mundo. Mesmo aqui nos encontramos numa modernidade que nos é própria e que consiste em adotar práticas muito diferentes do nosso discurso no âmbito dos costumes.
No entanto, essa diferença não se deve a uma certa hipocrisia como alguns se precipitam a afirmar, mas sim a um confronto frequentemente difícil entre os valores modernos e os valores tradicionais no fundo de cada um de nós. Trata-se de um confronto que causa rupturas e provoca sofrimento.
Isso, entre outras coisas, é o que me permite afirmar que os personagens dos meus romances se assemelham muito aos meus compatriotas, à maioria deles, eu diria.
Essa diferença entre o discurso e a prática se deve, no meu modo de pensar, ao fato que a própria mulher mudou profundamente. As mulheres árabes estão cada vez mais presentes em todas as áreas, por causa de uma evolução global das sociedades árabes, da sua própria luta e pelo fato de que são bastante sensíveis às conquistas das mulheres europeias e americanas. As mulheres árabes estão muito atentas às mudanças que afetam a situação das mulheres ocidentais.
A imagem que se tem da mulher árabe, entre nós nos países árabes e também nos países ocidentais, deveria ser completamente posta em questão. Refiro-me à imagem da mulher submissa e coagida a ficar em silêncio.
Eu diria ainda que a difusão do véu nas últimas três décadas não é necessariamente um sinal de rejeição da modernidade no âmbito dos costumes. Talvez isso se deva a muita modernidade em um tempo muito curto. Em todo caso, trata-se de um fenômeno muito complexo.
Minhas personagens femininas não são submissas de forma alguma. Pelo contrário, elas gozam de uma liberdade surpreendente de certa forma. Estou convencido de que elas se assemelham a milhões de suas compatriotas, as mulheres árabes.
No meu romance “Learning English”, a mãe pode ter ficado grávida de seu amante alguns dias antes de seu casamento e não de seu marido.
Em E quem é Meryl Streep?, a jovem mulher tem experiências antes do casamento. Ela possui sua própria visão de mundo e sua própria retórica. Ela compara o sol, extremamente vermelho, no momento em que desaparece no horizonte, à cabeça do sexo masculino ereto. O jovem esposo ficou chocado, mas o que ele poderia fazer?
Em “Esqueça o carro, Leila!”, para impedir que seu pai se case novamente após a morte de sua mãe, Rachid tentou convencer sua jovem amiga de se deitar com ele na esperança de saciar os desejos sexuais do pai que lhe incitavam a casar. A jovem amiga aceita porque espera comprar por um preço baixo o carro que seu amante pretende vender.
Os homens no mundo árabe rejeitam admitir que as mulheres são diferentes da imagem que eles têm delas, e os ocidentais não fazem um esforço sequer para questionar seus estereótipos.
Gostaria de salientar aqui que o número de jovens estudantes mulheres fazendo psicologia, sociologia ou letras – árabe, francês ou inglês – é muito maior do que o número de estudantes homens. Essas jovens estudantes serão em breve a maior parte da intelectualidade libanesa e árabe.
Gostaria também de salientar que muitos interessados, críticos e leitores, rejeitam esse gênero de romances, que tratam dos costumes, alegando que estão sujeitos à influência do Ocidente, sendo estranhos à nossa tradição literária. Essa afirmação é simplesmente falsa em sua totalidade.
Na tradição árabe, é necessário distinguir dois períodos, o da idade de ouro da literatura árabe, isto é, do começo do Islã até o fim do império abássida, e o período que se convencionou chamar Nahda, a “Renascença”, que data da conquista do Egito.
Durante o primeiro período, a literatura árabe gozava de uma liberdade total no âmbito dos costumes. Tudo foi dito ali. Tanto na poesia como na prosa. A poesia amorosa era muito difundida e muito madura. Veja a literatura que expressa o amor por rapazes. Basta recordarmos as Mil e uma noites e um livro do grande escritor do século IX, Al-Jahiz, a respeito da diferença entre jovens rapazes e escravas.
Foi no período da renascença que o “pudor” se tornou obrigatório e que a literatura teria que se dedicar aos problemas “sérios” ou “politicamente corretos”. A literatura tornou-se, em princípio, acessível a todos devido ao surgimento da imprensa e à alfabetização.
Mas as coisas mudam. Uma corrente do romance cada vez mais importante vem tratando dos problemas relacionados aos costumes sem levar em conta as exigências do “pudor”.
Uma última palavra: convido a todos que me escutam que, ao ler meus romances, não partam da ideia de que falarei sobre determinado assunto. Peço apenas que os leiam como romances, pois eles falam de casos específicos e particulares sem nenhuma pretensão de representatividade, muito menos de que vão ensinar algo em outras bandas.
E, depois, gostaria de confessar algo. Ao escrever um romance, penso apenas nos problemas internos desse romance: problemas técnicos de estrutura, de harmonia, de estilo, etc. E, uma vez que o trabalho está concluído e o romance está feito, digo a mim mesmo: e agora o que eu vou dizer sobre isso! E começo a tecer o discurso que me parece adequado acompanhá-lo.
Tradução de Felipe Benjamin
*Comunicação realizada na 2ª edição do evento Assises Internationales du Roman, em maio de 2008.
Texto original disponível em: http://www.rachideldaif.com/le-lit-un-lieu-de-confrontation-assises-internationales-du-roman-lyon-mai-2008/ .
Notas da tradução:
(1) Muitos protagonistas são homônimos do autor.
(2) Referência à obra “Elogio a concubinas e efebos” (مفاخرة الجواري والغلمان) em que dois homens se empenham na discussão do que seria mais prazeroso, o coito com mulheres ou homens.
Rachid Al-Daif
Rachid Al-Daif nasceu na cidade de Ehden, em Zgharta, norte do Líbano, em 1945. É Doutor em Letras Modernas pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris III, e atuou como professor de língua e literatura árabe, bem como de escrita criativa, em instituições de ensino superior na França e no Líbano.
Traduzido para mais de uma dezena de idiomas, Rachid Al-Daif é considerado a resposta árabe a Italo Calvino e Umberto Eco, tendo publicado mais de 20 títulos, entre romances e poesia.