A geografia sagrada islâmica, por Paula Carvalho
Mapas contam histórias e também passam uma determinada visão de mundo. Se a Terra é redonda (que me perdoem os terranaplanistas), sua representação é plana (aí sim precisamos concordar com eles) e, por isso, sofre distorções. O Google Maps, por exemplo, baseia-se na muito criticada projeção de Mercator, desenvolvida por Gerhard Mercator no ano de 1569, que representa o Hemisfério Norte como maior que o Hemisfério Sul. A distorção é tal que a Groenlândia fica do mesmo tamanho que a África! Mapas, então, passam uma ideologia, não são neutros. Não é o mundo em si, mas sim uma imagem, uma ilusão.
Instrumentos de inteligência de grandes impérios, por meio deles que representam a sua grandeza e vastidão geográfica. A cartografia é, portanto, assunto de Estado e foi alvo de espionagem ao longo da Era Moderna. Mapas também podem ser usados para contar histórias, como acontece claramente em dois livros da editora Tabla: Samarcanda, de Amin Maalouf, e Relatos da China e da Índia, de Abu Zayd al-Hasan al-Sirafi.
Em Samarcanda, a artista e sócia da Tabla, Ana Cartaxo, fez uma representação do caminho da celebrada Rota da Seda na Ásia, fazendo-os sonhar com nomes fabulosos e estradas desconhecidas por nós. Já em Relatos da China e da Índia, o mapa criado pela artista Sandra Jávera mostra a China até o litoral oriental africano. No entanto, para olhos acostumados às projeções do GPS de nossos celulares, essa representação vai causar um estranhamento, pois a direção sul está voltada para cima e o norte, para baixo.
Isso causa estranhamento hoje aos nossos olhos, mas na cartografia islâmica tradicional essa representação do eixo era a regra, era uma representação circular e não retangular. O mapa-múndi baseia-se na concepção gráfica do famoso astrônomo grego Cláudio Ptolomeu (que viveu nos séculos I e II d.C) de que o mundo é uma esfera. Gerald Tibbetts escreve que, pelo fato de não ser concebível um mundo “de cabeça para baixo”, acreditava-se que apenas um hemisfério era habitado. Essa imagem, que podia ser “projetada” facilmente em uma área plana, era representada como um círculo. A ideia era legitimada pela representação feita por Ptolomeu da parte inabitada do mundo, que ocuparia 180 graus da terra. Da mesma maneira, o mundo era representado por um círculo envolvido pelo “oceano circundante”, com os dois mares principais quase se encontrando no centro, caso não houvesse uma estreita faixa de terra.
A geografia sagrada islâmica é diferente da ptolomaica porque, como mencionado anteriormente, não emprega coordenadas cartográficas ou escalas de latitude e longitude e, como regra, representa Meca como o centro do mundo. Essa tradição é geralmente associada aos estudiosos do século X, como al-Balkhi (?-934?), al-Istakhri (?-c.961), al-Muqaddasi (?-c.990) e Ibn Hawqal (?-988), além do geógrafo Ibn Khurdadhbeh (?-912), do século IX, que fez o primeiro mapa conhecido que coloca a Caaba como o centro do mundo no seu livro Kitab al-Masalik wa’l-Mamalik (Livro das rotas e dos reinos). Ao negligenciar a precisão matemática na sua elaboração, esses trabalhos geográficos se aproximavam dos mapas medievais mais simples produzidos na Europa.
O centro do mundo
No Islã, o mundo começa e termina em Meca. Tanto na vida, quanto na morte: os muçulmanos se voltam em direção à Meca para realizar suas preces diárias e, ao morrerem, são enterrados com o rosto em direção ao “coração do Islã”. A peregrinação (Hajj, em árabe) à cidade sagrada, localizada atualmente na Arábia Saudita, acontece anualmente entre os dias 8 e 12 do mês do Hajj, o Dhul-l-Hijja. Há quase 1.400 anos, peregrinos convergem à Meca para realizar os rituais preconizados pelo Islã. As rotas da viagem criaram oportunidades de intercâmbios comerciais e culturais, uma vez que estudiosos realizavam essa jornada, incluindo geógrafos.
Entre os séculos IX e XVI, alguns geógrafos muçulmanos colocaram Meca no centro do mundo como um “princípio cosmográfico”, não se baseando em escalas ou coordenadas geográficas, para que todas as regiões do mundo se voltassem para a cidade, fazendo parte de uma tradição de geografia sagrada. Esse conceito representa o local de encontro de um espaço físico com um espaço espiritual, “pontos de acesso entre o divino e o humano” e, no islamismo, a noção de “sagrado” está vinculada à ideia de “santuário”, um lugar protegido de todas as formas de violência e discórdia, segundo Maria Dassi Dakake. Meca seria esse santuário. Em alguns mapas medievais produzidos por geógrafos islâmicos, seguindo essa noção cosmográfica, Meca é colocada no centro do mapa, como uma forma de simbolizar a “direção sagrada” (qibla, em árabe) dessa religião.
Segundo Ahmet Karamustafa, a cartografia islâmica pré-moderna é bastante heterogênea, uma vez que várias tradições teóricas e empíricas coexistiram por mais de um milênio (de 700 a 1850), com diferentes graus de interação cultural entre o Atlântico, passando por África até as ilhas do sul da Ásia. Esse contato com culturas diferentes, aliado ao fato de que o Islã se desenvolveu em uma região tão multifacetada quanto o Oriente Médio, contribuiu para essa variedade. Mesmo assim, a cartografia cosmográfica teve um papel importante na cultura islâmica, tendo se originado de mapas celestes.
É comum essa representação cosmográfica islâmica do mundo na obra Kitab Kharida al-‘Aja’ib wa Farida al-Ghara’ib (A pérola das maravilhas e a singularidade das coisas estranhas), do historiador árabe Umar bin Muzaffar Ibn al-Wardi (mais conhecido como Ibn al-Wardi). Ele é uma figura um tanto obscura na historiografia, uma vez que não se sabe ao certo em que período viveu – mas é provável que sua data de morte seja 1457 –, além de por vezes ser confundido com um outro Ibn al-Wardi, que morreu após ser acometido pela peste em 1349. Da mesma maneira, sua obra também não é muito precisa.
Como compilador, al-Wardi reuniu todo o conhecimento geográfico do mundo árabe do seu tempo, referindo-se a temas como clima, solo, fauna e flora, população, modo de vida, estados políticos e seus governos em diferentes regiões do mundo; além de fazer referência a vários historiadores e geógrafos, como al-Mas’udi (?-c.956), Ibn Hawqal e Ibn al-Adhim (?-1262).
A imagem abaixo mostra um mapa-múndi retirado dessa obra e cujo centro é ocupado por Meca (ao lado de Medina), simbolizada pela inscrição em árabe do seu nome; os mares estão representados pela cor azul; o “oceano circundante”, em formato circular, constitui as bordas do mapa; o sul está voltado para cima, onde se encontra a África e onde se situa uma pequena forma arquitetônica (um nicho) – é a “Montanha da Lua”, que corresponde à extremidade do mundo, para além da África, e que seria o ponto onde Ptolomeu identificou a nascente do rio Nilo.
Outro mapa interessante presente nesse mesmo livro pode representar uma das muitas lendas sobre a criação do mundo que surgiram em torno da tradição da geografia sagrada: no Mu’jam al-Buldan (Dicionário dos países), de Yaqut al-Rumi (?-1229), uma lenda conta que a Terra é sustentada pelos chifres de um touro, e esse animal é sustentado, por sua vez, por uma pedra que se encontra sobre as costas de uma baleia. No centro do manuscrito vê-se Meca envolvida por uma forma facilmente reconhecível como a de uma baleia; as partes em marrom são os mares, e a borda azul é o “oceano circundante” que, novamente, delimita as bordas do mapa.
O atlas seguinte, também de do Kitab Kharida, coloca novamente a cidades sagrada de Meca (dessa vez representada pela Caaba como um quadrado negro) – junto com Medina – no centro da imagem. Ao norte (localizado na parte de baixo do mapa), estão China e Índia; ao sul, as “seitas cristãs e os estados de Bizâncio”; os círculos que envolvem o desenho são os mares.
Outros mapas-múndi dessa obra seguem essa mesma composição, destacando o nome de Meca no centro do mapa; abaixo estão outros dois exemplos.
Um manuscrito turco, que pertenceu à coleção do estudioso holandês Christiaan Snouck Hurgronje, que se converteu ao Islã e visitou Meca em 1885, mantém o mesmo modelo de representação: no centro encontra-se Meca representada pela Caaba; os mares continuam azuis e o “oceano circundante” constitui as bordas do mapa; o sul e a África estão na parte de cima da imagem; e a “Montanha da Lua” é apresentada como um nicho arquitetônico pintado de vermelho. As inscrições estão em naskh (um estilo da escrita árabe) e é uma colagem sobre um espaço que havia sido reservado para um copista.
Já o livro Kitab al-Masalik wa’l-Mamalik é considerado como de autoria de al-Istakhri, também no século X – foi possível encontrar um atlas retirado de uma tradução persa desse livro: o mundo, representado em forma circular e com o sul virado para o alto do mapa, tem em seu centro a Pérsia (chamada de “Fars”) no lugar de Meca, e o Mar Cáspio, que margeia o Irã, está acima dos dois círculos situados na parte inferior do mapa; o Mediterrâneo e o Oceano Índico envolvem, cada um, três círculos vermelhos.
Al-Balkhi, al-Istakhri, al-Muqaddasi e Ibn Hawqal representavam uma nova tendência na cartografia islâmica chamada de “clássica” ou Escola de Balkhi, pela influência que Al-Balkhi teve no trabalho desses geógrafos. Os mapas produzidos por essa escola se tornaram o protótipo para a maioria das cartas geográficas realizadas pelas gerações seguintes: o círculo representando o “oceano circundante” envolve o mundo conhecido; o mapa é orientado com o sul voltado para cima, seguindo a convenção dos geógrafos muçulmanos; a África ocupa grande parte do Hemisfério Sul, e esse continente se alarga ao leste em uma faixa de mares que os geógrafos islâmicos acreditavam envolver o mundo, ao passo que a direção mais ao sul do continente africano é vista como terra incognita; Meca, juntamente com a Península Arábica, se situa no centro do mapa; a China se encontra na extremidade leste do Hemisfério Norte e a costa chinesa ao sul fica próxima à costa africana.
Quer conferir a parte 2 da Geografia Sagrada Islâmica? Em breve só aqui no blog da Tabla!
Paula Carvalho
Paula Carvalho é jornalista, doutora em História pela UFF e autora do livro “Direito à Vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt”