No romance O tumor, do líbio Ibrahim Al-Koni, publicado pela Tabla com tradução de Mamede Jarouche, o personagem Assanai recebe uma túnica que lhe garante certos poderes no oásis em que vive. No entanto, certo dia, ele percebe que a vestimenta se grudou em sua pele. Aos poucos, essa túnica começa a se misturar com seu corpo e se torna parte dele. Uma situação absurda que poderia nos remeter ao fantástico, porém desperta algumas curiosidades para além desse universo.
No decorrer das páginas do livro, Al-Koni faz uso desta alegoria da túnica para compor uma série de discussões em torno do poder. O poder, tal como a túnica, pode ser visto como uma espécie de capa ou vestimenta que institui e destitui determinados seres. Mas como?
É possível fazer uma aproximação entre a questão do poder, em O tumor, e as questões relativas à Lei, no romance O processo, de Franz Kafka. Joseph K., personagem principal do romance, é acusado de um crime que ele desconhece, mas do qual, ainda assim, precisa se defender. Em O tumor, o personagem também recebe e executa instruções de um Líder que ele desconhece, e que chegam até ele por meio de um Mensageiro. As ordens são tão obscuras quanto arbitrárias e já chegam mediadas por estes representantes ou mensageiros da Lei. A imagem da Lei, nesse caso, é um corredor repleto de portas, como em Diante da Lei, anexo que integra o romance O processo e que serviu como parábola da adaptação de Orson Welles para o cinema.
O processo de Kafka e o Tumor de Al-Koni: O que é a Lei?
No fim das contas, tanto o personagem de Kafka quanto o de Al-Koni se perguntam o que é a Lei, e ambos começam a perceber que sua exclusão se dá pela impossibilidade do acesso direto à essa Lei — o acesso só acontece via intermediários, e as verdades são provisórias. Como diz Kafka, “há muita esperança no mundo, mas não para nós”, sentença que é, via de regra, a condição dos excluídos frente à Lei. Estas figuras não sabem, portanto, quando se deve seguir a Lei e quem a legitima como tal.
Em O tumor, Al-Koni pergunta:
“Desprovido de caça, o ser humano se limita a recorrer à praça da Lei — e vocês por acaso sabem o que é a Lei?”
Já Kafka, traduz esta percepção assim:
“As nossas autoridades (…) não são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas, como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem a nós, os guardas. É assim a Lei. Como poderá haver enganos?
— Não conheço essa Lei — replicou K.
— Tanto pior para si.”
O esforço dos acusados, então, mais do que se defender, está em tentar descobrir qual é a Lei à qual eles estão submetidos. Outra intertextualidade possível entre os dois autores está na própria punição que ambos infligem a seus personagens. No caso de Kafka, temos o conto Na colônia penal, em que um funcionário apresenta a um visitante uma máquina de punição que “imprime” na pele do condenado sua própria sentença: “Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo. (…)”.
Em O tumor, Assanai também reconhece e identifica a ubíqua fusão entre túnica — objeto de poder —, sua pele e sua punição:
“Assanai examinou seus braços com atenção: a valiosa vestimenta, de fato, estava grudada nele. Perscrutou o braço, e eis que pedaços de pele estavam inteiramente fundidos a ele, até o fim do pulso. Aquelas encantadoras costuras forjadas com pedaços de pele enfeitados com fios de ouro haviam desaparecido na tessitura de sua pele, tornando-se parte dele mesmo; em seu braço, a única região desnuda eram a palma das mãos e os dedos. Apalpou a túnica na altura do peito e descobriu que também ali ela se fundira à sua pele. Tentou desabotoar os botões de ouro que pendiam da gola até o umbigo e deixou escapar um grito de dor: os botões haviam brotado na pele de seu corpo, como se a imponente vestimenta houvesse desaparecido, afundando-se em sua carne.”
A túnica que vira pele, por sua vez, se apresenta na alegoria de O tumor:
Apesar de haver secado, rachado e descascado, ela continuava soltando um líquido visguento que não era purulência, nem sangue, nem pus. Umidade escassa, mas que atacava suas roupas externas com a mesma gula com que atacava sua carne. Adentrou profundamente na pele do corpo e em seguida fez brotar veias ferozes, que passaram a correr por todo o seu corpo, sugando-lhe o sangue e devorando-lhe a carne. Sentia, na coceira insistente, o lento rastejar daquele verme glutão, no qual, no entanto, nunca prestara atenção. Não prestara atenção até que chegou aquele dia em que a convulsão o atingiu”.
O que chama atenção nessas punições é que elas não requerem um processo de julgamento, acusação e defesa, ou melhor, ela nem precisa ser anunciada, uma vez que ficará marcada na carne dos acusados, o que impede, inclusive, que eles possam se defender. Segundo o juiz de Na colônia penal, àquele que opera o maquinário punitivo, basta apenas um princípio: “a culpa é sempre indubitável”.
O processo se transforma em veredito
Do mesmo modo, o pintor Titorelli explica a Joseph K., em O processo, que “as sentenças do tribunal não são publicadas, nem sequer facultadas aos juízes. Por consequência, da justiça do passado só nos restam lendas”. O que significa, no fim das contas, que a sentença, em si, pouco tem a ver com a Lei, mas com os movimentos do próprio processo de acusação. É assim que o padre explica a Joseph K. sobre o seu caso:
“A sentença não vem de uma vez, é o processo que, aos poucos, vai se transformando em veredito”.
Deste modo, nos dois romances, tanto os privilegiados quanto os excluídos da Lei resultam de processos históricos, todos arbitrários; do mesmo modo, as leis são instauradas por quem assumiu certo lugar por um tempo e operou, portanto, a máquina do poder. Com o passar do tempo, as leis saem do arbitrário para uma prática cotidiana e, como diz Foucault, servem para isentar juízes da responsabilidade das sentenças. O filósofo lembra que antes de todo julgamento, os juízes perguntam aos réus se eles se consideram culpados ou inocentes. Assim, se a culpa ou a inocência for autodeclarada, o próprio réu assume para si a culpabilidade, ou seja, ele a incorpora (traz para dentro do corpo, como em Na colônia penal) ao mesmo tempo que isenta toda a cadeia penal de executar o processo. Acusadores, defensores, juízes e jurados deixam de ser agentes e apenas confirmam ou negam uma sentença já escolhida pelo réu.
Temos, assim, estabelecida uma metafísica da Lei, algo próximo da própria lógica religiosa em que “não sabemos os desígnios do divino”. Então, apenas por meio da subversão da Lei — de qualquer Lei — seria possível encontrar linhas de fuga para escapar às opressões. Afinal de contas, nenhuma Lei faz parte do corpo, mas todo corpo é enquadrado pelas máquinas infinitas da Lei.
Luiz Antonio Ribeiro
Luiz é doutor e mestre em Memória Social nas áreas de poesia e literatura brasileira e bacharel em Teoria do Teatro pela Unirio - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Em geral, se arrepende do que escreve.