O arador das águas, da autora libanesa Hoda Barakat, lançado ano passado pela Tabla, é um romance de vários fios e camadas. Um livro com muitas histórias em uma, contendo o mistério de não sabermos se foram inventadas pela própria Barakat ou se têm algum pé na realidade. Uma delas é a descrição de mulheres que só sentem prazer sexual ao entrar em contato com tecidos, em especial com a seda.
“Se você soubesse, Kevork, o que é a seda, não teria esperança de cura, disse meu pai”, relata perto do fim do livro o narrador Niqula, filho de um comerciante de tecidos que herdou a loja do pai em uma Beirute destruída pela Guerra Civil Libanesa. Tanto sua mãe quanto Chamsa, a criada curda por quem é apaixonado, são acometidas por esse “distúrbio” descrito no início do século XX pelo alienista francês Gaëtan Gatian de Clérambault (1872-1934). O que parecia envolto pela fantasia, na verdade, está banhado pela realidade.
Considerados dos casos mais curiosos da literatura psiquiátrica, os ensaios de Clérambault sobre esse “distúrbio” relatam histórias de mulheres que roubavam retalhos de tecidos em lojas de departamento para depois se masturbar com eles, atingindo o gozo sexual logo em seguida. O prazer viria do contato com a pele, do roçar dos dedos das mãos no tecido e até do som vindo desse toque, que uma das mulheres chama de “grito da seda”.
A “paixão erótica nos tecidos da mulher”, como chamado por Clérambault, estava ligada à cleptomania e à histeria, o que difere um pouco de como é descrita por Barakat em O arador das águas, pois o roubo do tecido não aparece como vital para as personagens atingirem o gozo sexual. Mesmo assim, o interdito se mantém na narrativa: Atena, mãe de Niqula, isola-se todas as noites no porão da loja para ter maior privacidade com a seda que a seduz; Chamsa vale-se dos seus encantos para convencer Niqula a trazer o tecido para casa, onde ela consegue ter acesso ao toque das fibras, abandonando posteriormente o amante pela seda.
“Sua sensação, suas vozes, seu grito, nada disso tem relação alguma conosco, com o nosso corpo nem com o nosso membro. Elas nos esquecem completamente; param de nos desejar. Não figuramos nos seus desejos. Nada permanece além da seda; o prazer desse tormento é isolado de todos os outros sentimentos. Elas se entregam completamente à seda, totalmente atraídas, sem escolha. Têm apenas olhos para ela”, continua narrando o pai de Niqula, que ainda cita Clérambault, quando escreveu que os comerciantes proibiram as mulheres de vender a seda, diante do perigo sexual que ela traria.
“Em épocas passadas, eles trancavam todas as funcionárias mulheres que trabalhavam na tecelagem ou no tingimento, deixando-as sair apenas para os seus turnos de trabalho. Anos depois, essas mulheres eram levadas para os manicômios.”
Ao longo de sua vida peculiar, Clérambault também se mostrou seduzido pelos tecidos. Ao viajar para o Marrocos, ele tirou uma série de fotografias de drapeados marroquinos, assim como escreveu um estudo etnográfico sobre como esses tecidos eram vestidos pelas mulheres marroquinas. Eram as “vestimentas vivas”, como eram chamadas por ele as vestes ainda utilizadas no tempo presente, uma vez que as “vestimentas antigas” eram alvo de estudos.
É uma “obra consagrada à beleza árabe”, como ele diz, e cujo estudo Clérambault alia seus conhecimentos psiquiátricos. Para estudar o drapeado, ele se vale do mesmo método que utilizou para duas de suas contribuições clínicas para a psiquiatria: a erotomania (um distúrbio em que uma pessoa acredita que seu objeto de desejo realmente lhe ama e passa a persegui-lo, às vezes sem esse alguém saber) e o automatismo mental.
O alienista chegou a fazer apresentações em congressos sobre o tema dos drapeados, inclusive com manequins, mostrando o modo como esses tecidos eram dobrados na Tunísia e no Marrocos. Ele tentou enumerar as diversas fórmulas locais de cada cidade para drapear o haik (uma longa peça retangular de tecido que as mulheres muçulmanas vestiam como se fosse um casaco por cima de outras roupas), criando uma silhueta particular para cada lugar.
Ele tentou criar uma tipologia para esses drapeados, chegou a publicar artigos em revistas científicas, mas deixou seu estudo inacabado ao cometer suicídio em 17 de novembro de 1934, quando estava ficando cego por causa da catarata que então dominava seus olhos.
Clérambault havia pedido que sobre seu túmulo fosse colocada uma estela funerária árabe esculpida por um artista do Marrocos, em 1917. No entanto, sua família decidiu não realizar esse desejo, que só foi concretizado muitos anos depois, depois de localizarem a estela funerária no depósito do Museu do Homem, em Paris. Nela, lê-se, em árabe:
“A quem visitar um dia nossa tumba:
Lembre-se do assalto da Morte.
Não seja vaidoso.
Quantos daqueles que se julgavam preservados
Foram tragados pela fossa
Seja devoto e piedoso nesta vida
E triunfará.”
Informações sobre Clérambault retiradas do livro O grito da seda: entre drapeados e costureirinhas: a história de um alienista muito louco, com organização e tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
Conheça o livro: O arador das águas
Paula Carvalho
Paula Carvalho é jornalista, doutora em História pela UFF e autora do livro “Direito à Vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt”