Você conhece a história do teatro na Palestina?

Em um contexto de opressão e constante violação aos direitos humanos, o teatro dá aos jovens palestinos a oportunidade de não só imaginar outros mundos possíveis (para além da realidade apreendida), mas também de encarná-los, corporificá-los e assim habitar um presente que aparentemente não lhes pertence. Por isso, a experiência estética teatral na Palestina pode ser transformadora tanto para os artistas envolvidos quanto para os espectadores, revelando-se um meio de autonomia criativa, emancipação subjetiva e afirmação do corpo.

Como consequência da fragmentação territorial, além de fatores históricos e socioculturais, não há uma realidade urbana homogênea na Palestina ─ e, por conta disso, as condições que se oferecem à produção teatral são distintas. Estima-se que uma parcela importante da população palestina nunca tenha visto uma apresentação teatral ao vivo, muito em decorrência das limitações impostas pela ocupação israelense; as referências culturais mais próximas são as expressões artísticas tradicionais (a exemplo da dabka, dança típica da cultura camponesa), a contação de histórias e as telenovelas do mundo árabe (em especial, as egípcias e libanesas). 

“Retorno à Palestina”, do The Freedom Theatre, apresentada em espaços públicos de Jenin (2016)

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Ao longo da década de 1970, houve um boom de trupes teatrais amadoras; muitas delas não duraram longos anos, mas a experiência abriu frente para a profissionalização. As peças daquele período tratavam quase sempre de assuntos políticos a fim manter viva a memória da Nakba (Catástrofe), discutir problemas da vida cotidiana sob ocupação, encorajar a resiliência da comunidade e estabelecer bases para a criação de um Estado palestino. Não havia preocupação com técnicas ou estéticas inovadoras, mas uma busca pela construção de uma visão coletiva e um compromisso com a resistência. Situa-se o aparecimento do teatro profissional na Palestina em 1977, com a criação da companhia Al-Hakawati. Em 1984, a trupe inaugurou sua sede, localizada em um antigo prédio em Jerusalém Oriental, e fundou o Teatro Nacional Palestino, um centro cultural e artístico em atividade desde então, também conhecido como Teatro Al-Hakawati. 

Atualmente há diversas outras companhias em atividade na Palestina, e as produções teatrais de muitas delas têm ênfase especial no aspecto pedagógico ─ seja na realização de peças que circulam entre as escolas locais (com o financiamento, em grande parte, de organizações estrangeiras), seja na oferta de oficinas nas próprias instituições escolares ou para o público infantil de comunidades mais carentes, como as dos campos de refugiados. Realizam também temporadas de peças para o público jovem e adulto, com montagens ora mais críticas, tocando em temas internos da sociedade palestina, ora mais cômicas, com bastante aceitação. Pude constatar que a metodologia do Teatro do Oprimido, desenvolvida pelo diretor e dramaturgo brasileiro Augusto Boal (1931-2009), está presente nos processos cênicos e nos cursos de vários coletivos teatrais palestinos.

“A pequena vendedora de fósforos”, de Inad Theater, de Belém, na escola Al-Hurriya, no vilarejo Tuqu’ (2016).

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Entre as companhias profissionais que conheci, destaco o Freedom Theatre (Teatro da Liberdade ou, em árabe, Masrah Al-Hurriya), cuja sede está situada no campo de refugiados da cidade de Jenin, no norte dos territórios palestinos ocupados. Também centro cultural aberto à comunidade, o Freedom Theatre abriga desde 2008 uma escola profissionalizante de teatro com três anos de treinamento, tendo a contribuição de professores convidados europeus e de outros países árabes. Suas montagens revelam um labor estético e técnico e geralmente apresentam teor político, baseando-se em dramaturgias de nomes consagrados, a exemplo de Bertolt Brecht ou Samuel Beckett; textos literários, como Fazenda dos Animais, de George Orwell, e Homens ao Sol, de Ghassan Kanafani; ou ainda criações de autoria própria. Em Fragments of Palestine (Fragmentos da Palestina), de 2009, a trupe decidiu retratar “a normalidade do absurdo cotidiano” por meio de um espetáculo de teatro físico sobre a realidade palestina sob ocupação, narrado em gibberish, ou seja, linguagem nonsense. O texto foi baseado em experiências vividas ou relatadas pelos próprios artistas, procedimento que a companhia adotaria em muitas peças seguintes.

Maria Fernanda Vomero

Maria Fernanda Vomeroé jornalista, performer e doutora em Artes (Pedagogia do Teatro) pela Universidade de São Paulo, com uma pesquisa sobre processos cênicos, território e experiência micropolítica na América Latina. No mestrado, debruçou-se sobre as experiências teatrais realizadas na Palestina, com destaque para o grupo e centro cultural The Freedom Theatre (Teatro da Liberdade), no campo de refugiados de Jenin, Cisjordânia. Tem especialização em Documental Creativo pela Universitat Autònoma de Barcelona, Espanha. Atua como curadora, redatora freelancer, intérprete de conferências performáticas e provocadora cênica em diversos coletivos teatrais da cidade de São Paulo. Publica resenhas literárias no perfil @_mafeentrelivros.

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