“Samarcanda, a mais bela face que a Terra já mostrou ao Sol.” Esta frase presente no livro Samarcanda, do franco-libanês Amin Maalouf, resume o fascínio que essa importante cidade da Rota da Seda despertava nos seus visitantes. Não é à toa que o autor descreve o deslumbramento do então jovem pensador persa Omar Khayyam ao adentrar as portas da cidade.
“Para ele, as ruas estão desertas, a Terra não tem sons, o céu não tem nuvens, e Samarcanda continua sendo o lugar dos sonhos que descobrira dias antes.
Chegara ali depois de três semanas na estrada e, sem descansar, decidira seguir exatamente os conselhos dos viajantes antigos. Suba, convidavam, no terraço do Kuhandiz, a antiga cidadela, passeie amplamente seu olhar, verá apenas água e vegetação, canteiros floridos e ciprestes talhados pelos mais habilidosos jardineiros em forma de bois, elefantes, camelos ajoelhados, pantera que se enfrentam e parecem prontas para saltar. De fato, mesmo de dentro dos recintos, da porta do Monastério, a oeste, até a porta da China, Omar viu apenas pomares cerrados e córregos vivazes. E, aqui e ali, a erupção de um minarete de tijolo, uma cúpula escura cinzelada, a alvura do muro de um belvedere. E, à beira de um lago, escondida por salgueiros-chorões, uma banhista nua que espalhava a cabeleira ao vento ardente.
Não foi essa a visão de paraíso que quis evocar o pintor anônimo que, muito depois, ilustrou o manuscrito do Rubayat?”
Foi na cidade, aliás, que o poeta começou a sua obra-prima Rubayat, no século XI, provavelmente inspirado por sua atmosfera de riqueza e intelectualidade.
Samarcanda no livro Sovietistão
O mesmo fascínio pode ser encontrado nos viajantes do presente. Em Sovietistão (Ayîné, 2021, trad. Leonardo Pinto Silva) a jornalista norueguesa Erika Fatland termina assim o capítulo em que descreve sua visita por Samarcanda, que hoje no Uzbequistão:
“Na primeira vez que visitei o Registão [praça principal de Samarcanda], o sol já estava se pondo. Sentei-me diante de uma das fontes, que estava desligada, pois era inverno, e fiquei apreciando a vista. Cada uma das madraças, com suas fachadas azuladas e arcos perfeitos, é uma obra-prima em si. Admirá-las no conjunto, em perfeita simetria, é algo sublime. É como se a simetria as fizesse levitar. As nuvens além das fachadas tinham uma cor cinza-claro. Atrás delas, veios róseos, cinzentos e alaranjados se entrelaçavam no céu. Nas árvores atrás de mim, os pardais chilreavam como se não houvesse amanhã. Devia haver mais de uma centena deles. A sensação que tive foi a de que talvez o grande propósito dessa longa jornada de cinco longos meses fosse vir me sentar justo aqui, apreciar o pôr do sol do Registão, ao som do pop uzbeque e da sinfonia esganiçada dos pardais.”
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Fundada em 700 a.C. pelos sogdianos, foi capital de diferentes impérios. O nome pode tanto significar “cidade das pedras”, “cidade rica” ou “lugar onde as pessoas se encontram”. Por causa da sua localização geográfica privilegiada, no meio da Ásia Central, ligando as rotas de comércio do Império Chinês com o resto do continente asiático e posteriormente com a Europa, a cidade floresceu. Os primeiros comerciantes chineses apareceram no século II a.C., mostrando a antiguidade das várias Rotas da Seda e do comércio na região. Seus mercados tornaram-se famosos, havia um apenas para a seda, feita de modo sigiloso na China e posteriormente no Japão, e outro para tecidos coloridos.
Desde então, o comércio, aparentemente, fez parte do DNA dos seus habitantes. Um viajante chinês no século VII registrou que “todos os habitantes são educados para se tornarem mercadores. Quando um menino completa cinco anos, começam a ensiná-lo a ler, e, quando aprende, começam a ensinar-lhe as artes do comércio”. O Reino de Sogdiana controlou, durante séculos, o comércio entre os chamados Oriente e Ocidente. Tanto que foram criados postos comerciais em várias partes da Ásia, do Mar Negro e Constantinopla até Sri Lanka.
O apogeu de Samarcanda
Samarcanda, assim como grandes impérios, foi destruída pelas invasões mongóis, mas foi com Timur-i-Land, “Timur, o Coxo”, também conhecido como Tamerlão ou Tamerlane, que a cidade atingiu seu apogeu no século XV. Lá, existe uma estátua em homenagem a ele, que teria dito sobre o império timúrida: “Podes ver a força do meu império, olha para os edifícios criados por ele”.
Entre esses edifícios está a mesquita Bibi Khanum (nome da concubina predileta de Timur), que já foi a maior do mundo, mas foi destruída em um terremoto em 1897, embora partes dela tenham sido restauradas durante o governo soviético. A mesquita é conhecida pela sua bela cúpula azul. Os prédios pareciam ser fantásticos por sua decoração e seu volume, incorporando elementos do estilo de Damasco e de Bagdá.
Um dos principais herdeiros de Timur, seu neto Mirza Muhammad Taraghay, conhecido por Ulugh Beg, o Grande Líder, foi o responsável por manter a mística em torno da cidade acesa. Grande astrônomo e matemático, ele mandou levantar um observatório considerado o mais avançado do mundo islâmico da época. Ele também mandou construir uma madraça (escola) para ensinar estudantes, que foi acompanhada de outras duas no século XVII que fazem parte do Registão, a praça que era o centro da cidade antiga de Samarcanda, que virou Patrimônio Mundial da Unesco.
De influência claramente persa, Samarcanda, que agora virou livro pelas mãos de Amin Maalouf, publicado pela Tabla, foi anexada no século XIX, como parte do emirado de Bukhara e restauraram essas construções. Com o fim da União Soviética, essa região da Ásia Central foi dividida em várias repúblicas independentes: Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão. Ao olhar o mapa dessa área, é possível perceber como as fronteiras entre esses países parecem alinhavadas por uma máquina de costura defeituosa. Dizem que, na verdade, em termos étnico-culturais, Samarcanda deveria fazer parte do Tajiquistão e não no Uzbequistão, mas como os russos queriam manter essas regiões divididas, fizeram a separação que acharam ser mais conveniente.
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Paula Carvalho
Paula Carvalho é jornalista, doutora em História pela UFF e autora do livro “Direito à Vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt”