A literatura árabe mais antiga como nós a conhecemos hoje não deixa de ser um produto do projeto estético e político realizado pela elite intelectual do Califado Abássida de meados do século VIII a finais do século seguinte. Na longa linha de transmissão daquele legado, coube aos abássidas a configuração final e decisiva, incluídos os textos basilares da civilização árabe e islâmica, como o livro corânico e a literatura anterior a ele.
De modo geral, a transmissão da literatura árabe antiga, que remonta a finais do século V, até a época dos Abássidas abarcou aproximadamente trezentos anos e se deu num combinado entre os modos de transmissão oral, a cargo de memorizadores e recitadores, e os modos de transmissão material, expressa numa escrita em processo de formação, que praticamente não deixou registros. Entrado o século IX, os textos antigos estavam modelados ou até mesmo ressignificados.
Assim, não importa tanto se os poetas pré-islâmicos viveram de acordo com o que entendeu a historiografia islâmica, mais importam talvez o conteúdo e a forma dos poemas, bem como o discurso neles contido, porque representam a alteridade da civilização islâmica.
Dentre os poetas pré-islâmicos “atualizados” naquele tempo, Chânfara mostra-se um caso interessante, pois a persona que se depreende da leitura de seu Poema dos árabes é a representação de um anti-herói que se tornaria, no decorrer dos séculos, um dos modelos legítimos do homem islâmico. Mas afinal, como um bandoleiro, fora da lei, pode ser tomado por exemplo de conduta? Esse herói é um poeta num lugar e numa época em que ele era o orgulho e o porta-voz de sua tribo. Mas nosso poeta era um suluk (صعلوك). Os poetas saalik (صعاليك, plural de suluk) eram homens que, atingidos por algum infortúnio, eram expulsos ou eles mesmos se afastavam de suas tribos, vindo a levar uma vida errante e marginal.
Com o mote da ruptura com a gente de sua tribo e as dificuldades enfrentadas por esse herói nos aforas do deserto, o poema de Chânfara se desenvolve em várias etapas.
Na primeira, o herói abandona a companhia de seu irmãos tribais (“eu a outro bando agora o meu passo me inclina”) para viver sozinho no deserto, em vida dura comparada à vida que levam os chacais e as hienas. Já na parte inicial do poema, vemos que a primeira característica modelar pregada por Chânfara é a sua generosidade, pois, ainda que tivesse fome, nosso herói não era o primeiro a avançar à comida (“eu não sou/ o mais rápido; é o mais ávido quem se adiantou”). Além de ser mais generoso do que seus companheiros, ele também é o mais valente, uma vez que era o primeiro a enfrentar o perigo (“sou quem primeiro enfrenta o animal feroz”). Assim, a valentia é a segunda qualidade exemplar a aparecer no poema. Segundo Chânfara, ele só precisa de sua valentia (“um coração ardente”), da adaga (“a afiada nua”) e do arco, seus três únicos companheiros (“A mim é o que basta”).
Numa segunda parte do poema, há a diferenciação entre a persona do bandoleiro e os homens dos acampamentos. Ao satirizar os homens da tribo (“Não… sou desses tolos, caseiros, enrabichados”), o herói acaba por fazer um autoelogio, apresentando outra característica positiva digna de ser imitada: o dinamismo. O herói precisa estar em movimento e se adaptar às adversidades para sobreviver. A honradez e a dignidade também estão presentes na formação da persona desse herói. Embora se apresente como um fora da lei, ele teme o desprezo e, por isso, não se torna um tirano pela força nem se coloca na posição de mendicante (“nem persigo, crítica afiada, feito mendigo”).
Ao narrar sua vida no deserto e citar seus crimes, o herói de Chânfara revela resiliência, paciência e vitalidade. Ele não se deixa abater nem pela fome, nem pelas adversidades do clima, nem pelo medo.
Todas essas qualidades seriam, por si só, bons referenciais para uma conduta condizente com os novos ideais do Islão. No entanto, não podemos esquecer de que esse herói é, na verdade, um anti-herói, que assalta caravanas e comete uma série de assassinatos (“Mulheres faço viúvas, órfãs as criancinhas”).
Dessa forma, o Poema dos árabes pode oferecer uma leitura simbólica da formação do herói apropriada ao/pelo imaginário do leitor do século IX. A ruptura do bandoleiro com a tribo poder ser lida como a ruptura com o sistema tribal, que ainda era vigente até o Califado Omíada.
Se atentamos à ponderação do tradutor Michel Sleiman, o herói abandonar os seus companheiros e encontrar uma nova família entre as cabras (“camurças douradas,/ como virgens a portar vestes de longa cauda”) pode configurar a premonição da simbologia da nova Umma, comunidade muçulmana, onde todos em qualquer lugar do mundo são iguais, não sendo mais necessário que o parentesco sanguíneo defina o conceito de pertencimento.
Além disso, embora o herói de Chânfara não se orgulhe de seus assassinatos e das consequências dos mesmos, ele continuava a executá-los, porque esse parece ser, a nosso ver, o destino do qual não seria possível escapar.
A ruptura com o sistema tribal, a noção de um novo pertencimento e o conceito de destino são tidos como temas muito presentes no pensamento islâmico. Portanto, a simbologia atribuída pelos leitores dos anos 800 a esse poema, supostamente composto no período pré-islâmico, pode ser lida como a simbologia da transformação, em que um homem rompe com o sistema que conhecia até então para criar um novo.