O corpo pode ser para a glória ou para a opressão, para o voo ou para a queda e não há como não pensar nessas dualidades quando se pensa na existência feminina diante do mais que milenar projeto de dominação que o patriarcado representa. É o que tão bem delineia a escritora e pensadora feminista egípcia Nawal El-Saadawi em Duas mulheres em uma, romance que conta das descobertas, angústias, opressões e busca por uma liberdade incondicional de Bahiya Chahin, jovem estudante de medicina que, muito cedo, se vê diante da incongruência da vida da mulher: um corpo, uma existência que deseja alçar voo frente à dureza da queda imposta pela força da gravidade, bela metáfora para a relação entre o feminino e o patriarcado.

Situado no Cairo dos anos 1950, o romance reflete sobre um tema muito explorado literariamente: a questão do duplo, do doppelganger. No entanto, diferentemente de outras obras que exploram a duplicidade do indivíduo sob o viés da monstruosidade individual, do segredo íntimo e obscuro, em Duas mulheres em uma a abominação é política, aquela que faz com que mulheres precisem não apenas assumir uma persona que não é a sua, mas se dobrar a desejos e determinações alheias. 

Assim temos Bahiya Chahin, no auge dos seus dezoito anos, pouco interessada no roteiro que escreveram para ela: a faculdade de medicina, uma imposição do pai; o silenciamento do próprio corpo, ensinado pela mãe. E nesse desinteresse entra todo o resto: o ideal de um casamento adequado, filhos, a vida doméstica etc. Ao questionar, ao se ver diante de uma ambiguidade social que não a representa, Bahiya Chahin é uma ameaça, porque se torna aquilo que o entorno social mais teme: uma desobediente. E a desobediência, bem sabemos, é política. Assim como a arte. A arte, que Bahiya esconde da censura paterna, será intermediária de uma nova construção feminina individual e coletiva. E é sobre isso que se trata Duas mulheres em uma: sobre se ser de outra espécie e conquistar a consciência necessária para se tornar quem verdadeiramente se é. 

Depois de A queda do Imã, a Tabla nos presenteia com mais essa obra de Nawal El-Saadawi e isso é, de fato, algo a ser celebrado:  a prosa dessa importante escritora, ainda pouco conhecida entre o público leitor brasileiro, nos tira do lugar, seja pela força de sua escrita vertiginosa, seja criando histórias e protagonistas extraordinárias.


Micheliny Verunschk

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