Foi publicado recentemente pela Tabla o livro infantil “O Girassol”, da escritora Amal Naser. O livro vem se somar a outros dois títulos publicados anteriormente que se destacam pela diversidade: “Yunis”, da mesma autora, publicado em 2021, e “Os passarinhos coloridos de Adel”, de Fátima Sharafeddine, publicado em 2022.

Em “O Girassol”, o protagonista é um garoto que não é nomeado ao longo de todo o livro. Tampouco é mencionado o nome de sua vizinha e amiga, a “senhorinha”. Anônimos, os dois vivem num lugar também sem nome, esquecido, apagado dos mapas. Ninguém conhece a existência dessas pessoas, que vivem em pequenas casas feitas de papelão. Dessa forma, começamos a leitura do livro sem informações precisas que nos localizem, como a identidade ou a idade das personagens ou um nome de bairro, cidade ou país.

O que sabemos é que se trata de um lugar onde há escuridão e “a noite dura dias”. Ao folhearmos o livro, notamos a importância das ilustrações para o andamento da história, com páginas nas quais predominam cores escuras e cenários sombrios em contraste com páginas ensolaradas e coloridas.

Conheça “Yunis”, de Amal Naser

Ao longo da narrativa, compreendemos que o protagonista é uma pessoa cega. Descobrimos também que se trata de um garoto ávido pelo aprendizado. E sua vizinha, por outro lado, embora não saiba ler nem escrever, tem muito a ensinar. A talentosa senhorinha costura diversos tipos de artigos, de roupas a bonecas, e ensina o garoto a “ler” os tecidos.

Os tecidos têm sua “língua” própria, que o garoto estuda com auxílio da senhorinha e aprende a “ler”, como se lesse um livro em Braille. Assim, o garoto aprende sobre linhas e agulhas, sobre os tipos de tecidos e os segredos de cada um e sobre a arte da costura. Seda, veludo, linho, lã, cetim… Essas especificidades exigiram uma série de pesquisas durante o processo de tradução, principalmente ao traduzir o glossário no fim do livro, que traz informações sobre os diferentes tipos de tecido ao lado de imagens ilustrativas.

O outro livro da autora publicado pela Tabla, “Yunis”, foi abordado por mim em outro texto que escrevi para o blog da Tabla, no qual mencionei o processo e os desafios de traduzir este e outro livro, “Uma história inventada do começo ao fim”, de Sonia Nimer.

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“Yunis” conta a história de um menino com Síndrome de Down e um grande talento culinário. Se em “O Girassol” mergulhamos num mundo de cores, linhas e tecidos, em “Yunis” são os sabores que se destacam, e o cheiro de leite fervido, baunilha, chocolate… Yunis vai para a cozinha de sua casa e prepara todo tipo de receitas apetitosas. Nesse livro, um dos desafios foi traduzir doces e outras coisas deliciosas para o público leitor infantil. Em alguns casos, foi necessário fazer adaptações para que certos alimentos soassem saborosos de acordo com o paladar das crianças brasileiras.

Diferentemente de “O Girassol”, em que percorremos algumas páginas com o garoto até uma personagem cruzar o caminho dele e fazer um questionamento relacionado a sua visão, em “Yunis”, a autora declara já nas primeiras páginas que se trata de um menino com Síndrome de Down e explica o que isso significa em termos científicos adaptados para o público infantil, mencionando quais são os traços que diferenciam Yunis das demais crianças. As ilustrações também são fundamentais nesse livro e contribuem com essas explicações e também com a caracterização da família de Yunis, dos amigos, da cozinha e das receitas que ele prepara.

Já em “Os passarinhos coloridos de Adel”, por outro lado, a personagem principal que dá título ao livro é uma criança surda. No entanto, isso não é informado em nenhuma das páginas, mas sim revelado aos poucos, conforme avançamos na leitura. De forma delicada, a autora descreve todos os sons ao redor de Adel enquanto ele se concentra em seu passatempo favorito: fazer passarinhos coloridos de papel. Quando uma luz vermelha acende no quarto do menino, acende também uma luz para quem está folheando o livro. Começamos a entender que se trata de um menino surdo, o que constatamos logo em seguida, na mesa de jantar, onde a família se reúne e Adel conta, com orgulho e utilizando a linguagem de sinais, quantos passarinhos de papel ele fez nesse dia.

Conheça “Os passarinhos coloridos de Adel”, de Fátima Sharafeddine

Uma das minhas principais preocupações ao traduzir “Os passarinhos coloridos de Adel” foi justamente manter esse mistério sobre Adel, que vai sendo desvendado aos poucos na leitura. Neste e nos outros dois livros mencionados acima, busquei reproduzir na tradução o mesmo cuidado com o qual as autoras, Amal Naser e Fátima Sharafeddine, e os ilustradores dessas obras tratam os temas em questão.

Nos três livros, as personagens desempenham papel de protagonistas das histórias. São elas que conduzem os acontecimentos nas narrativas e todas elas se destacam pelo talento em alguma atividade: o garoto, na costura; Yunis, na culinária; e Adel, na confecção de passarinhos coloridos de papel.

Outro ponto comum aos três livros é que, além de promoverem uma aproximação entre o público ao qual se destinam e as personagens, há uma série de informações que contribuem para o aprendizado de quem lê (ou ouve) a história e para a expansão do vocabulário. Em “Yunis”, há toda uma série de palavras específicas relacionadas às receitas. Há também uma explicação – adaptada para a compreensão infantil – sobre o cromossomo que faz de Yunis uma criança diferente das outras. “O Girassol” contém um vocabulário ilustrado de tecidos no fim do livro. E “Os passarinhos coloridos de Adel” inclui nas imagens instruções sobre como fazer passarinhos de papel.

Além disso, acredito que os protagonistas dos três livros tenham como característica em comum a generosidade. Eles dividem seu conhecimento com outras pessoas, Yunis entrega doces secretamente para as outras crianças e o garoto de “O Girassol” é o responsável por mudar os rumos de sua vida e da senhorinha.

Essa imagem positiva evidente nos três livros, contudo, nem sempre é observada na literatura infantil. Em artigo sobre o tema, Price, Ostrosky e Mouzourou (2015, p. 564) (1) apontam alguns problemas observados em livros infantis voltados à diversidade, como representações incoerentes do corpo, personalidades rasas ou limitadas e “curas milagrosas” de condições que são permanentes. Ainda de acordo com o artigo, crianças surdas, como é o caso de Adel, muitas vezes são caracterizadas de forma errônea nos livros infantis como portadoras de uma “doença”. As autoras notam uma mudança desse quadro a partir do final dos anos 1990, mas defendem que ainda há escassez de obras literárias infantis que retratam positivamente a diversidade.

Conheça “O Girassol”, de Amal Naser

E basta ler as notícias para constatar que informações incorretas e preconceitos ainda são amplamente disseminados no Brasil, até mesmo dentro das instituições de ensino. Não são raros os casos de declarações equivocadas por parte de políticos e formadores de opinião ou situações de constrangimento pelas quais crianças passam frequentemente nas escolas.

Dessa forma, a publicação de livros como “O Girassol”, “Yunis” e “Os passarinhos coloridos de Adel” pela Tabla cumpre uma importante função de informar, educar, sensibilizar e aproximar. Ao traduzir esses livros, procurei reproduzir o mesmo respeito, delicadeza e seriedade que as autoras demonstram em seus textos ao abordar a diversidade.

Notas:

(1) PRICE, Charis Lauren; OSTROSKY, Michaelene M.; MOUZOUROU, Chryso. Exploring representations of characters with disabilities in library books. Early Childhood Education Journal, [S.L.], v. 44, n. 6, p. 563-572, 2015. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10643-015-0740-3.

Maria Carolina Gonçalves

Maria Carolina Gonçalves é tradutora e intérprete do par linguístico árabe-português. É doutoranda e mestra pelo Programa Letras Estrangeiras e Tradução (LETRA) da Universidade de São Paulo (USP) e bacharela em Letras com habilitação em Árabe e em Jornalismo, também pela USP. Residiu no Egito entre 2018 e 2019, onde estudou árabe padrão moderno e árabe dialetal egípcio no Instituto Francês do Cairo, e esteve também na Palestina, em 2016, em viagem de estudos. Atualmente, realiza pesquisa voltada à literatura árabe moderna de autoria feminina. Atua também com o ensino de árabe e português.

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