Há uma diferença entre o intelectual, o escritor e o pesquisador. Existem escritores intelectuais e pesquisadores intelectuais, porém há também aqueles que são unicamente escritores e pesquisadores. Eu pertenço ao segundo grupo. Sou apenas romancista e professor universitário. Não sou intelectual, pois a minha definição de intelectual é a histórica: o intelectual é o escritor, o pesquisador ou o jurista que se utiliza do “prestígio” e de sua importância por uma causa que considere justa (…). O romancista, o poeta, ou o pesquisador adquirem sua importância pela causa a que servem e não o contrário. (2)

A importância de Rachid Al-Daif enquanto escritor contemporâneo de língua árabe resulta certamente da inovação no campo da narrativa literária em prosa. Utilizando-se de uma linguagem direta, clara e sem embelezamentos retóricos, o autor simula histórias reais com um único fim: fornecer prazer ao leitor.  

Os primeiros trabalhos de Rachid Al-Daif estão situados no contexto da Guerra Civil Libanesa (1975-90), fato que impulsionou a produção literária deste e tantos outros escritores da sua geração, isto é, aqueles nascidos em meados da década de 40 em diante. O caos e a destruição exigiram que os romancistas dessa geração buscassem novas formas para explicar a realidade que a sociedade libanesa vivia. Para tal, fizeram-se necessários novas formas de expressão e novos temas que dessem conta das tragédias dos tempos de guerra sectária que dizimou milhares de vidas, destruindo o país e seu símbolo, a cidade de Beirute. Mona Amyuni explica que entre os contemporâneos de Rachid estão nomes como Elias Khoury e Hoda Barakat, os quais, assim como ele 

“frequentemente misturam técnicas realistas com fantasia. Esses escrevem fábulas que se movem entre a realidade e o sonho, criando cenários dentro de cenários (devaneios da imaginação do protagonista, ou pode-se até pensar em histórias de experiências reais da vida do protagonista) que muitas vezes convergem ou divergem, concretizando a fragmentação da cidade e do Eu”. (3)

Dentre os romances mais conhecidos de Al-Daif, que pertencem a essa fase (4), encontra-se a primeira obra que lhe concedeu reconhecimento internacional “Prezado senhor Kawabata” (عزيزي السيد كواباتا), de 1995, a qual foi traduzida para nove idiomas: inglês, italiano, espanhol, francês, alemão, holandês, catalão, polonês e sueco. 

Nessa obra de forte tom autobiográfico, ambientada em meio à guerra civil, o protagonista-autor dialoga com o contista e vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1968, o japonês Yasunari Kawabata. Sua escolha se dá pelo fato de o autor japonês pertencer a uma realidade totalmente alheia à realidade libanesa e aos seus conflitos sectários, como enfatiza o autor em várias ocasiões. A natureza estrangeira, supostamente neutra, de Kawabata se destaca pelo seu suicídio, que não o levou a transformar-se em mártir, afinal não teria morrido por nenhuma grande causa, diferentemente do que costuma acontecer no Líbano e outros países árabes. 

O narrador em primeira pessoa, vivendo uma situação de quase morte ao longo de todo o livro, dirige-se de forma epistolar ao seu interlocutor em busca de respostas e conselhos enquanto lhe conta histórias de sua família e amigos, revelando-lhe seus medos e sonhos de juventude:

Dizem, prezado senhor Kawabata, que no momento em que o ser humano está morrendo, passa-lhe diante dos olhos um filme rápido e desconcertante de toda a sua vida, fazendo-lhe recordar tudo o que se passou, desde a infância até o último instante. No meu caso, posso assegurar para o senhor que nada disso aconteceu. Quando morri por um instante, diversas vezes, após ter sido atingido na nuca, nos ombros e em todas as partes do meu corpo, não me lembrei absolutamente de nada. Não passou diante de meus olhos uma memória sequer. Nada me preocupou — nem mesmo o além — a não ser a dor que sentia. (5)

Assim como nesse romance, Rachid Al-Daif faz uso corrente de um tom autobiográfico em muitos de seus trabalhos, não só por recorrer ao uso da primeira pessoa, como também por nomear alguns de seus protagonistas com seu próprio nome “Rachid”. Desse modo, o leitor tem a sensação de estar sendo confidente de situações reais e íntimas pelas quais o autor passou.

Em um de seus romances do período pós-guerra civil de título “Learning English” (ليرننغ إنغلش), de 1998, o protagonista da história é um homem de meia idade chamado Rachid que se julga moderno e educado, afinal obteve seu doutorado na França antes de se tornar professor de literatura no Líbano. O romance se inicia quando o protagonista, sentado num café de Beirute, informa-se pelo jornal do assassinato de seu pai por vingança, na cidade de Zgharta, ao norte do Líbano, somente dois dias após seu enterro, resultando numa série de reflexões e histórias do personagem sobre sua família, sua origem e sua identidade. A história termina com o personagem tomando a decisão de ir à sua cidade natal.

Faz tempo que me transformei e meu mundo agora é outro, sem nenhuma ligação com o mundo em que fui criado, um mundo, que para mim, é como se fosse de uma outra vida, que não a minha vida de agora. Une vie antérieure, como dizem em francês. Agora estou feliz em viver neste meio, estou feliz de trabalhar como professor nesta universidade libanesa junto ao departamento de Língua e Literatura Árabes, na Faculdade de Letras. Além do mais, ganho um salário que me permite, apesar dos preços altíssimos e da inflação, ter uma casa (com o aluguel antigo naturalmente) num bairro nobre de Beirute, ao lado da região da Hamra, próximo ao luxuoso Hotel Bristol e nas proximidades da residência do primeiro-ministro atual, o senhor Rafiq Hariri, um dos homens mais ricos do mundo. (6)

Essas características em comum entre o autor e o personagem levam o leitor a crer que Rachid escreveu uma obra contando sua própria vida, uma vez que este também reside em Beirute, realizou seu doutorado na França e trabalha como professor de literatura árabe e escrita criativa na universidade, além de ser igualmente natural da cidade de Zgharta. 

Outra obra em que há uma grande dificuldade em se distinguir o autor de seu protagonista é em A volta do alemão ao bom senso (عودة الألماني إلى رشده), de 2006, que resultou do encontro de Rachid Al-Daif com o escritor alemão Joachim Helfer, na ocasião de um intercâmbio entre escritores. No livro, Rachid revela a intimidade do colega alemão, ao passo que relata sua experiência de conviver com o escritor homossexual durante três semanas. O leitor pode assim acompanhar uma narrativa permeada por reflexões e questionamentos do protagonista acerca da homossexualidade e de outras questões morais numa perspectiva que compara os costumes na Alemanha e no Líbano. Neste trecho, pode-se verificar o efeito de realidade que o autor cria na obra ao inserir informações reais sobre si próprio:

Que seja homossexual! Talvez tal experiência seja muito benéfica para mim, em especial porque eu me interesso bastante por questões morais, mais exatamente pela moral sexual, escrevo a respeito e considero que a moral é o terreno de confronto entre a modernidade ocidental e a situação que nós, árabes, vivemos (…). (7)

No entanto, o autor ressalta que compor um texto em primeira pessoa, com seu nome ou não, faz parte de uma estratégia para entreter o leitor, já que, segundo ele, o leitor ganha maior interesse pelo que lê quando sente que aquilo que está sendo narrado é real e que de fato aconteceu, como explica a seguir:

Sinto uma liberdade extrema quando me imagino no lugar de um personagem de um dos meus romances […]. Descobri com o tempo que o prazer do leitor dobra quando lê um romance que considera ser a vida do seu criador. O seu gosto se intensifica. É natural que o ser humano goste de um certo voyeurismo, isto é, de espiar a intimidade dos outros e saber o que se passa nela. (8)

Apesar de alguns dos protagonistas dos seus romances portarem seu nome, fica claro que esses personagens não são o autor Rachid Al-Daif que, por sua vez, insiste em salientar que muitas vezes seus personagens consistem em pessoas às quais ele teria medo de se assemelhar. Seus personagens são incoerentes e problemáticos, portadores de manias e obsessões que incomodam o leitor e causam desconforto. É por essa razão que surge a necessidade do autor em se colocar na pele de seus personagens como que para defender sua visão de mundo e seus pontos de vista.

O protagonista de E quem é Meryl Streep?, por exemplo, consiste num homem machista obcecado por sexo, que está tentando entender o fracasso da sua vida conjugal, ao passo que reflete sobre o comportamento de sua mulher, que parece seguir o exemplo das “ocidentais”. Ao longo da narrativa, o leitor fica preso dentro da cabeça do narrador transtornado, que o tempo todo se preocupa em justificar suas opiniões e ações odiosas contra as mulheres.  

De modo geral, os personagens construídos por Rachid podem ser identificados como pessoas comuns, pois não são heróis investidos de grandes missões. Seus personagens são seres humanos reais com seus defeitos e qualidades. A composição desses personagens está atrelada ao objetivo da literatura de Rachid em promover o prazer da leitura incitando o leitor a crer que os personagens existem de fato, assim como nas antigas narrativas da tradição árabe, como explica o autor: 

Percebi que a beleza das “histórias” (أخبار) mencionadas nesses livros remete ao fato de não quererem dizer nada além delas mesmas! O narrador não incumbe os protagonistas das histórias com uma missão. Os protagonistas independentemente de sua condição permanecem seres humanos assim como todas as pessoas. O protagonista da “história” vive, morre, come, bebe, erra e sucumbe como todo ser humano. Ele não é um símbolo e nem é investido de papéis metafísicos, nacionalistas ou humanistas, ele é apenas um homem. (9)

Rachid Al-Daif é profundamente inspirado pelos autores da tradição literária árabe, de modo que se percebe em seus livros um diálogo direto com o estilo literário dos grandes prosadores árabes. A obra em que isso está mais evidente é, sem dúvida, “Maabad faz sucesso em Bagdá” (معبد ينجح في بغداد), de 2005, livro no qual conta a história de um poeta de nome Maabad que parte para Bagdá, por volta de 810 d.C., nos tempos do califado abássida. Nota-se na elaboração dos personagens do romance uma influência clara de dois clássicos: “O Livro das Canções” (10) (كتاب الأغاني) e“Pradarias de Ouro” (11) (مروج الذهب). Assim como nessas obras, seus personagens são pessoas comuns com sentimentos humanos, como a inveja, a vingança e etc.

Segundo Rachid, a busca de inspiração nos clássicos se dá exatamente pelo êxito que essas obras tiveram em proporcionar prazer ao leitor, como justifica ao falar do livro das Mil e uma noites:

Por que não aprender com os grandes [autores] clássicos escrevendo o que é prazeroso sem transformar meus personagens em símbolos e modelos, e sem investi-los de funções subliminares ou algo mais? O livro das Mil e uma noites, por exemplo, não é um livro imortal porque carrega uma “mensagem” ou então porque “queira dizer” algo. (12)

Já em E quem é Meryl Streep?, Al-Daif dialoga com a tradição árabe por meio das reflexões de “Rachid”, o protagonista da história, que faz referências constantes à tradição literária árabe, a fim de justificar suas suspeitas em relação à sua esposa e em entender a natureza das mulheres. Por exemplo, ao relembrar seus tempos de adolescência, o personagem recorda seu primeiro contato com o livro das Mil e uma noites, o qual lhe chocou ao revelar a verdadeira índole adúltera das mulheres. Em outra parte do livro, ele recorre aos tratados medievais de sexo, pertencentes à tradição árabe clássica, para discutir qual a melhor posição durante o ato sexual e quais os papeis do homem e da mulher na cama.  

Os traços mais marcantes em seus trabalhos em prosa aliam-se a uma linguagem clara e refletida no uso do árabe padrão sem exageros retóricos, recorrentes na literatura árabe, junto a um forte tom de oralidade, devido ao uso de expressões coloquiais próprias do dialeto libanês. Rachid afirma que a linguagem utilizada em suas obras resulta da necessidade de alcançar o seu público leitor, como explica:

“Meu sonho é ser lido pelo menos instruído, pelo trabalhador e pelo filósofo, por essa razão construo minhas sentenças com a maior simplicidade possível. Não digo superficialidade, mas uma simplicidade transparente que permita descobrir o que está mais no fundo.” (13)

Pode-se dizer assim que o uso de um árabe padrão mais simplificado e mais próximo do falar cotidiano, combinado com elementos tais como: o uso da primeira pessoa, a construção de personagens que consistem em pessoas comuns e transparentes, além do resgate dos recursos utilizados pelos grandes prosadores árabes, resulta na intensificação do gosto de seus leitores pela sua narrativa única a qual busca simplesmente entretê-los.

Notas:

(1) Este texto é um trecho extraído e adaptado da dissertação de mestrado de título Pode entrar Meryl Streep! A ética da tradução em um romance de Rachid Daif, defendida por Felipe Benjamin Francisco no Programa de Estudos Árabes da FFLCH-USP em 2014. Link: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8159/tde-13102014-191704/pt-br.php  

(2) Entrevista de Rachid Al-Daif a Adam Chams Addin, publicada no jornal Al-Safir em 18/11/2012.  

(3) Tradução nossa de AMYUNI, M.T. “Style as Politics in the poems and novels of Rashid al-Daif”. In International Journal for Middle East Studies, Vol 28, No 2, 1996, p. 183. 

(4) Entre os romances do autor que possuem a Guerra Civil Libanesa como pano de fundo estão: “O Espaço suscetível entre a sonolência e o sono” (فسحة مستهدفة بين النعاس والنوم), de 1986, “Mecanismos da miséria” (تقنيات البؤس), de 1989, e “O lado da inocência” (ناحية البراءة), de 1997.   

(5) Tradução nossa de “Prezado senhor Kawabata” (1995), com sua primeira edição pela Riad El-Rayyes. Página 10. 

(6) Tradução nossa de “Learning English”, Riad El-Rayyes, 1998, pp.16-17.

(7) Trecho de A volta do alemão ao bom senso, traduzido por Mamede Jarouche e publicado na revista Granta 12 – Líbano e Síria, de 2014.

(8) Tradução nossa de um trecho de entrevista concedida ao jornalista e escritor Kamel Riahi, publicada originalmente em 23/04/2007 no site doroob.com. Hoje disponível na página pessoal do autor tunisiano: https://housefictionrk.wordpress.com/

(9) Trecho da entrevista a Kamel Riahi (23/04/2007).

(10) Obra de Abu Al-Faraj Al-Asfahani (morto em 967 d.C.) que trata da poesia árabe desde seus primórdios até os tempos do autor. Nela estão reunidos trechos de diversos poemas junto com o nome de seus recitadores e os recursos técnicos que utilizavam. O livro também conta a história e a origem dos poetas.  

(11) Obra do historiador Al-Mas‘udi (morto em 956 d.C.) onde são contadas inúmeras histórias que contemplam desde o início da humanidade com o profeta Adão até os tempos do Califado Abássida.  

(12) Trecho da entrevista a Kamel Riahi (23/04/2007).

(13) Trecho da matéria “Rachid Al-Daif: a bela literatura não é minha profissão” (رشيد الضعيف: الأدب ليس مهنتي!) no jornal libanês Al Akhbar, edição de 7 de janeiro de 2006, p.12. 

Felipe Benjamin

Felipe Benjamin Francisco é professor e tradutor do árabe. Graduou-se em Letras – Árabe pela Universidade de São Paulo, onde obteve os títulos de mestre e doutor pelo programa de Estudos Judaicos e Árabes. Suas publicações científicas abordam, sobretudo, os aspectos linguísticos do árabe e seus dialetos. Também é membro fundador do grupo Tarjama – Escola de tradutores de literatura árabe moderna (USP), sob coordenação de Safa Jubran. Nos últimos anos, para além da docência e da pesquisa, tem atuado como tradutor e intérprete comunitário árabe-português no contexto de refúgio.

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