Para além do romance “E quem é Meryl Streep?” (trad. Felipe Benjamin Francisco), o autor libanês Rachid Al-Daif apresenta uma diversidade literária que lhe é particular: um exemplo é o romance “Habitantes da Sombra” (أهل الظل) – título provisório –, publicado em 1987, durante a guerra civil libanesa. 

O romance gira em torno da relação entre um homem e uma mulher, sem nomes, e uma casa na montanha. Sua narrativa é permeada por inúmeras digressões temporais e intensos fluxos de consciência em que se confundem as fronteiras entre a realidade e os delírios do narrador personagem. O passado, refletido nas memórias do narrador, se mescla com o presente e com um futuro hipotético que dissolve as divisões temporais no romance. 

Já as fantasias do narrador remoem seu desejo de construir uma família ideal em uma casa paradisíaca na montanha, que, ora existe, ora não, enquanto é erguida em meio às mais absurdas intempéries, como a desesperadora imagem de uma escavadora à beira de um precipício. A imagem da cobra e do escorpião também ocupa um lugar simbólico e inusual dentro da mente do narrador personagem, que é tudo a que temos acesso. 

A linguagem poética, que permeia todo o texto, também diferencia este romance de outras obras do autor, provocando, em alguns momentos, a impressão de se ler um longo poema. Confira:

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Não quero me aquietar, quero voar. Não gosto de morar no campo, prefiro estar sem fôlego na cidade, gosto de respirar o mesmo ar que respiram milhões de pessoas. Gosto de dormir quando dormem as pessoas ou depois delas, e gosto de acordar enquanto elas ainda dormem.

O silêncio da serra pressiona meus ouvidos. Prefiro o ruído eterno dos carros nas ruas da cidade. A quietude das coisas na montanha me oprime.

Quando voltei para a cidade, um dia, depois do confinamento no vilarejo, respirei fundo, como se inalasse o ar das belas florestas.

Eu não podia imaginar, antes desse acontecimento, que a cidade fosse tão espaçosa.

Viva o concreto! Abaixo a pedra!

Esses apartamentos, empilhados uns sobre os outros em altos edifícios, agradáveis. E esses rostos desconhecidos! Eu odeio o final de semana quando a cidade fica sem gente.

(…)

Nunca sonhei ter asas, como um pássaro, para voar até um lugar alto, até uma montanha:

Nasci à beira do mar e gostei do mar. A glória para mim nunca foi o pico de uma montanha, mas um navio que se afasta nas profundezas do horizonte.

Quando subíamos a montanha no verão, eu ficava feliz porque a escola se afastava. O calor do litoral era para mim mais agradável do que o ar ameno da montanha. Mas, a cidade!

A cidade é o litoral, a cidade é a mistura de etnias, línguas, contradições, religiões e crenças. Uma mistura de risco.

Ela tinha seus argumentos e eu tinha meus motivos. A casa na montanha agora é a salvação.

(…)

Serei radiante, sempre vigorosa, e você será para mim a felicidade dos dias. Gosto das rosas nas janelas, gosto da neblina na serra no verão. Vou lhe dar filhos e – se quiser – filhas. Sua casa estará sempre limpa, onde só encontrará paz, farei a sua cama com lã de ovelhas e suas roupas quentes serão tecidas por minhas mãos. Não deixarei que se banhe sozinho, despejarei água no seu corpo, vou untá-lo com sabão perfumado de ervas do campo regadas com poemas e cantos, e lavarei entre os dedos dos seus pés, por minha causa.

Enxugarei a água de você, irei me ajoelhar entre suas pernas e ungi-lo com perfume. Irei estendê-lo na cama no quarto quente que dá para as terras de inverno, colocando meu nariz e minha boca sob a sua axila.

Mel dos tempos preciosos e delícias das estações.

Amarei meu filho porque ele é seu. E meu coração será grande o bastante para vocês dois.

Meu tempo será todo para você e para ele.

Eu me esforçarei para que não acorde com o choro dele um único dia sequer; não permitirei que ele sinta dor para que teu coração não doa. E quando eu acender o fogo para te aquecer, ficarei atenta, cuidarei para que ele não se aproxime e toque a chama; cuidarei também para que o fogo continue aceso e você, aquecido.

Não se incomode enquanto estiver sentado pensando ou distraído, eu levo para você uma xícara de chá de hortelã, camomila e malva. Chá adoçado com o mel das montanhas.

No verão, deite-se ao sol ou à sombra de uma árvore, eu levo água fresca para você.

Nenhum deslize meu o obrigará a exagerar no consumo de café, pois isso o prejudicaria. Cuidarei para que fique longe dos motivos e te tentem a fumar.

Nozes, amêndoas, figos secos, uvas passas e chá de flores, isso será sua refeição pela manhã.

O mel das abelhas selvagens será o doce que beberá. 

Os frutos das árvores úmidas, as ervas da primavera e a colheita das estações. Onde então, onde se escondem os escorpiões e as cobras no inverno? Sob qual tábua abandonada, em que buraco, em que tronco, em que árvore bela tanto no inverno quanto no verão, sob qual rocha, na escuridão de que porão? Em que escuridão?

Na luz do dia, eu vejo um objeto e vejo sua sombra, mas na escuridão da noite não vejo o objeto nem sua sombra

À noite, eu tomo cuidado para não trombar nos objetos que vejo durante o dia com os outros sentidos.

O que a noite esconde além daquilo que o dia mostra?

(…)

Minha mãe adorava rezar, e nunca provou o gosto do vinho. Meu pai a levou com ele algumas vezes ao restaurante. Na primeira vez, ela não comeu, deixou meu pai comer sozinho. Na segunda vez, ela pediu uma comida, mas não comeu, levou com ela para casa. Na terceira vez, comeu um pouco e trouxe o restante para casa, então comemos nós. Na quarta vez não foi, e assim nas vezes seguintes.

Ela me perdeu, certa vez, em uma das ruas do mercado. O sol começava a se pôr, e eu andei de calçada a calçada entre multidões e carros, enquanto a criançada do bairro estava na frente das vitrines das lojas, até que ouvi a voz dela. O rosto dela estava vermelho, e o que aparecia do seu colo, ensanguentado, e o cabelo estava solto. Ela me agarrou pela mão com força, causando muito dor. Quando chegamos em casa, ela contou como ela não sabia como escapei dela e desapareci. Ela havia parado em frente à vitrine de uma loja que vendia roupas femininas e seguia contemplando um vestido muito bonito, quando surpreendeu-se de repente que a mão dela não segurava a minha mão. Então, ela virou a cabeça, eu tinha sumido. Na hora, o mundo escureceu nos olhos dela. Ela correu para a direita, correu para a esquerda, perguntou nas lojas, perguntou aos que estavam parados e aos que passavam e aos sentados nas calçadas. Alguns tinham me visto, outros não; alguns achavam que tinham visto, outros não, e mencionaram a ela uma criançada nos becos e junto aos reservatórios de água. Ao pôr do Sol, ela me encontrou.

Hesitou, até que entrou na rua em que eu estava. Quase entrou na outra rua, mas alguma coisa a impeliu ao sentido certo.

Se não tivesse me encontrado, ficaria procurando a noite toda.

* Traduzido pelos membros do grupo “TARJAMA: Escola de Tradutores de Literatura Árabe Moderna” (CNPQ/USP).

O Tarjama é um grupo de pesquisa em tradução ligado ao curso de Letras –Árabe da Universidade de São Paulo. Liderado pela Profa. Safa Jubran, o grupo tem entre seus membros alunos de graduação e de pós-graduação. 

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