Haifa, cidade no noroeste da Palestina histórica, incrustada em montes que cortam a paisagem do horizonte mediterrâneo, tem uma beleza que bate como um alento para quem percorre as barreiras e violências espalhadas no território do confronto colonial Palestina/Israel. Mas, ao nos aproximarmos pelo sul, Haifa tem na sua estrutura urbana as feridas do passado trágico e as possibilidades futuras palestinas. 

O passado em suspenso

Na segunda metade do século XIX, as cidades costeiras da Palestina, ainda sob controle otomano, tiveram um crescimento considerável, consequência das reformas amplas de modernização do governo em Istambul, que envolvia mudanças na economia e em políticas de terra.  

Gary Fields, em seu “Enclosure – Palestinian Landscapes in a Historical Mirror”, explica que grandes concentrações de terras começam a se formar no século XVIII, mas de fato escalam no século XIX. Isso ocorre com a cobrança de uma taxa dos cultivadores e, principalmente, porque a terra se torna um ativo comercial. Assim, uma elite urbana de diferentes partes da Palestina (que havia acumulado fortunas do comércio e da indústria) comprava lotes de terra estatal de um governo otomano endividado. Dessa forma, se constituíram grandes cultivos com produção voltada para exportação, como é o caso das laranjas. 

Essa nova burguesia também conseguia agregar terras de camponeses endividados que não viam outra saída senão a venda das terras onde cultivaram por décadas. Na área de Haifa, por exemplo, a família Kouri adquiriu grandes lotes ao redor da cidade. 

Rashid Khalid, em seu “The Hundred Years’ War on Palestine”, explica que a estrutura social da época era rural e patriarcal, com elites urbanas de poucas famílias que tinham o domínio da política local. De qualquer forma, as reformas otomanas possibilitaram novas dinâmicas sociais, com mudanças na burguesia comercial, profissões que ofereciam novos meios de mobilidade social e surgimento de uma nova classe trabalhadora urbana.  

As mudanças sócio-políticas foram mais impactantes nas cidades costeiras, principalmente Haifa e Yafa, transformando a paisagem urbana desses centros na parte final do domínio otomano — ainda que os centros políticos mais importantes continuassem a ser Jerusalém, Nablus e Hebron, eixo montanhoso central da Palestina. Alan Dowty, em seu “Arabs and Jews in Ottoman Palestine – Two Worlds Collide”, revela como foi nesse momento que Haifa tomou o lugar de Acre como o maior porto do norte da Palestina. 

Nas três décadas antes de 1882, a população da vila triplicou para 6 mil pessoas. De acordo com registros otomanos, o número da população judaica (antes da chegada do sionismo) em Haifa, em 1885, era de 944 pessoas. 

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A mudança radical com o colonialismo britânico

Com o desmonte do Império Otomano (no pós 1ª Guerra Mundial), a Grã-Bretanha assume o controle da Palestina, instalando um governo colonial britânico no território a partir de 1917. Haifa, como o resto da Palestina, passa pelos impactos da colonização sionista acoplada ao governo dos britânicos. Isso proveu aos sionistas algo que eles não tinham com os otomanos: acesso ao aparato de governo da Palestina e, consequentemente, a recursos para o enraizamento dos colonos. 

A caminho da Conferência de Paris de 1919, que definiria os termos do Mandato na Palestina, as autoridades inglesas sabiam que a oposição árabe tornaria extremamente difícil a cessão de privilégios políticos aos sionistas. Assim, o Escritório Externo da Inglaterra indicou que as preferências que podiam dar “aos judeus, para que efetivamente pudessem levar adiante a política do Lar Nacional Judeu, eram as econômicas, com desenvolvimento da terra e trabalhos de utilidade pública”.

Um exemplo são as indústrias da época em Haifa. A cidade era estratégica para o projeto colonial britânico por ser o porto escoador do petróleo que viria do Iraque. Para sustentar o desenvolvimento da cidade, os ingleses financiaram empreendimentos de colonos judeus, em detrimento dos pedidos árabes por soberania de recursos. 

Em estatísticas de 1906 (ou seja, momento final otomano), do alemão Davis Trietsch, a população de Haifa era de 20 mil pessoas: 10 mil muçulmanos, 8 mil cristãos, 2 mil judeus. Já no fim do período, em 1946 (às vésperas do fim do Mandato britânico), a cidade de Haifa tinha 145.430 pessoas, com 41 mil muçulmanos, 74.230 judeus e 29.910 de cristãos. Ou seja, às vésperas da catástrofe de 1948, a população judaica tinha uma pequena maioria: quase 75 mil judeus para pouco mais de 70 mil palestinos. A maior parte das novas chegadas de colonos judeus foram colocadas para manusear as fábricas, lugares de construção e oficinas na nova área industrial de Haifa. 

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A destruição de Haifa

Quando a campanha de expulsão dos palestinos ganha tração, no início de 1948, Haifa é o primeiro alvo urbano, de acordo com Ilan Pappe. Como eram recém-chegados, os migrantes/colonos judeus haviam estabelecido casas nas montanhas, ou seja, viviam topograficamente acima dos bairros árabes. Assim, os palestinos eram alvos fáceis de atiradores no topo. Houveram outros métodos de intimidação: de tropas judaicas que rolavam barris com explosivos para a parte baixa da cidade, nas áreas residenciais árabes, até ruas que haviam sido banhadas em combustível. Com as ruas inflamadas, os palestinos saíam em pânico para apagar os “rios de fogo”. Ali, eram alvejados por tiros de metralhadoras. 

Como resultado da decisão política de uma liderança determinada a apagar os bairros árabes para que os refugiados expulsos não pudessem retornar e os que ficassem se sentissem como estrangeiros, cerca de 220 prédios foram destruídos na parte antiga da cidade de Haifa. Os prédios que sobreviveram nessa parte baixa da cidade foram ocupados por instituições do regime.  

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Crédito: Jim Pringle, Associated Press, April 1948

O presente e o futuro palestinos

Ao nos aproximarmos de Haifa pelo sul, vemos um mosaico de montes ocupados por prédios mais recentes, os bairros árabes parcialmente reconstruídos e o mediterrâneo como pano de fundo dessa arquitetura colonial. Acopladas a esse mosaico estão chaminés de indústrias de refino petroquímico e uma estratégica base militar naval israelense (um legado do colonialismo britânico).

Ao mesmo tempo, a cidade se constitui num centro de reconstrução das possibilidades de um futuro palestino. Nas vezes que estive por lá, pude conhecer grupos de artistas que trabalhavam em esforços de educação de crianças palestinas (porque engajadas no sistema educacional israelense), além de produções artísticas que ocupam espaços destruídos e prédios não-ocupados. Um reviver dos espaços palestinos que os israelenses pensavam ter feito desaparecer. Haifa se torna, portanto, um centro agregador da juventude de vilas e cidades palestinas da Galileia, que deixam o ambiente familiar para estudar, florescer e fazer política.  

Samaa Wakeem, artista palestina e ativista cultural, assim descreve sua relação com a cidade: “Decidi viver em Haifa pelas últimas duas décadas também porque a cidade se tornou uma espécie de capital cultural dos palestinos de 48, onde teatros e bares recebem eventos culturais e musicais de associações. Ali, movimentos políticos de jovens criam uma cena cultural palestina. Eu diria que chega a criar uma espécie de bolha dentro da cidade mista. Assim, desse modo, Haifa se torna uma cidade para reagirmos, demonstrarmos e liderarmos protestos contra as violações e o apartheid israelense”. 

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