Julia Grillo escreve sobre a tradição oral da contação de histórias em “Histórias, crianças e maravilhas”

“E então, plim! Transformou João numa formiguinha e ele foi correndo para dentro do castelo do rei, passou por debaixo da porta, subiu as escadas…”

Depois de ter tentado se esconder nos mais inusitados esconderijos, com a ajuda dos animais que ele mesmo ajudou pelo caminho, é assim que o Rei das Formigas finalmente ajuda o menino João a conseguir se esconder do espelho mágico da princesa, capaz de encontrar qualquer pessoa escondida em qualquer lugar. Qualquer lugar exceto na própria princesa, onde ele vai se esconder em forma de formiga, aninhando-se dentro da gola do seu vestido.

É fascinante como há uma sabedoria tão grande nas histórias de tradição oral, nos contos maravilhosos. De onde terá vindo essa sabedoria, como terá feito o caminho para se codificar no desenho dos contos maravilhosos? E de que maneira será que esses contos atravessaram e atravessam gerações, tempos sem fim, cruzam oceanos, desertos, mundos inteiros, e encontram-se versões do mesmo conto em tempos e lugares tão distintos?

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Mistérios da tradição oral. Nós que somos contadoras de histórias estamos acostumadas a ouvir as pessoas dizerem que esses contos são para crianças. Podemos deixar que pensem isso; quanto mais discretos e disfarçados estiverem os contos, como com uma roupagem de contos para crianças, mais o segredo protege a si mesmo, como se diz. E sim, eles são para crianças. Também. Os contos maravilhosos da tradição oral são para pessoas de todas as idades, e cada um se relaciona com eles segundo sua capacidade, possibilidade e necessidade.

É muito importante clarear isso quando vamos falar da importância e do valor que tem contar histórias para crianças. Afinal, quem conta é um adulto. E como é que uma história pode chegar até a criança se o próprio adulto não entra em contato com ela? Quando contamos uma história para uma criança, proporcionamos para ela uma forma de contato difícil de igualar. A história cria uma ponte de contato amoroso e criador entre quem conta e quem ouve. Amoroso pelo fato de eu empresar minha voz, que vem do coração, para este momento; criador porque quem conta e quem escuta estão criando suas próprias imagens para a história contada.

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A criança vê, diante de seus olhos — ou dentro de seus olhos! — João transformando-se em formiga. Vê o menino escondido dentro do tubarão, dentro da barriga da baleia, no fundo mais fundo do mar. Ela vê e vê de novo, porque todos nós sabemos que as crianças gostam mesmo é de ouvir uma mesma história várias vezes, quando gostam da história.

Essa possibilidade do maravilhoso, onde tudo pode ser, sempre quando orientado por um propósito, essa falta de limites entre o possível e o impossível, essa ampliação total da realidade, é como uma nutrição para as crianças. O mundo dos adultos é tantas vezes tão limitado, tão material, sem respiros, e a criança ainda não desenvolveu uma percepção da realidade assim, “em caixinhas”, por assim dizer. Sua imaginação voa. Então o desenho das histórias maravilhosas tem uma afinidade com o seu modo de perceber e imaginar o mundo. E quem sabe como, na formação dessas crianças, isso as enriquece e nutre para toda a vida.

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Pois percebemos que as crianças querem ouvir a mesma história uma e outra vez porque vão como que detalhando o seu próprio desenho interno da história, que vai crescendo dentro dela. Primeiro o esboço, depois os detalhes, depois as cores… E assim a sua capacidade de criar imagens, de criar o mundo, também vai se desenvolvendo, se exercitando como um músculo.

Não é à toa, nem é por acaso que essas histórias atravessam gerações e voltam a estar sempre presentes, nem é por acaso que as crianças amam ouvir histórias bem contadas. No desenho das histórias estão como que encapsuladas noções fundamentais para a vida. Noções que podem se tornar verdadeiros recursos para uma pessoa lidar com as situações que a vida lhe apresenta, como nas aventuras dos personagens de uma história.

Esses contos são um convite para uma reflexão de alto nível. Ou podem ser. Sempre que houver um conto, alguém que conte e alguém que ouça. São estas as condições para que o menino João faça todo o seu percurso até enfim conseguir passar pela prova do espelho, casar-se com a princesa e depois, no devido tempo, tornar-se rei daquele reino. 

O reino da história, no qual a criança habita sendo todos os personagens. Os que ajudam e são ajudados, os que buscam e encontram, os que se transformam. 

Pois assim é, como sempre foi e seguirá sendo sempre, enquanto o mundo for mundo. 

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