As mídias e jornais brasileiros, em geral, não estão acostumados a noticiar vastos acontecimentos sobre o Oriente Médio. Quando quebram o silêncio, as informações sempre se assemelham: o noticiário escorre sangue acompanhado de uma comoção ínfima, que posteriormente nos traz a indiferença e naturalização dos conflitos.
Um exemplo disso foram as notícias dos dias 16 e 17 de abril de 2023. No domingo (16), ataques realizados pelo Estado Islâmico (DAESH/ISIS) vitimaram dezenas de civis, enquanto na segunda-feira (17), os Estados Unidos atacaram o país, alegando terem conseguido seu objetivo: derrotar um líder do movimento extremista que, conforme as forças estadunidenses, teria orquestrado anteriormente ataques na Europa e no Oriente Médio.
Apesar da perda territorial do DAESH na Síria, desde 2019 e com grande participação de combate dos próprios civis, dos movimentos organizados e do governo sírio, o que parece estar em evidência ainda são os ataques entre o DAESH e os EUA. Como sempre, as narrativas heroicas estadunidenses hegemonizam tudo o que foi noticiado em relação a contínua Guerra ao Terror, ao afirmarem tentar estabelecer uma democracia e exterminar o terrorismo, quando na verdade reforçam o terror à população nestes mesmos países.
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Para somar ao rol de problemáticas, o conflito no país é muito mais amplo, envolvendo diversas frentes frequentemente invisibilizadas. Desde 2011, a Síria é palco de um conflito originado por manifestações populares contra o governo baathista de Bashar Al Assad, que 1) consideram que as políticas baathistas beneficiam apenas aos grupos aproximados de seu governo, 2) se posicionam contra ataques a grupos étnicos e religiosos minoritários e 3) reivindicam melhores condições de vida e trabalho.
Nesse contexto, surgem grupos dos mais diversos espectros políticos da sociedade civil opositora ao governo, alguns com perspectivas mais liberais, outros com profundas raízes islâmicas conservadoras e extremistas, e ainda outros com ideais libertários. Os curdos, que buscavam sua independência na região Norte do país, também se somam às forças contrárias ao governo e que lutam por suas reivindicações e autonomia. Afora os demais países que se inserem nesse conflito com seus próprios interesses, como a Rússia, Irã, Arábia Saudita, Israel e os próprios Estados Unidos – como mencionado anteriormente –, cada qual com suas motivações políticas e econômicas.
A oposição mobilizada no país é também fragmentada em diversos projetos políticos de nação e demandas de grupos minoritários, enquanto o governo de Bashar al-Assad conta com um sólido apoio de forças nacionais nas principais cidades, como a capital Damasco. Esse cenário remonta uma constância de conflitos e o fomento dos diferentes grupos envolvidos pela auto-organização, mas também o apoio externo dos demais países que intervêm no contexto.
Por que os conflitos ainda se mantém?
Dessa forma, podemos compreender que a guerra se mantém pelos inúmeros interesses dos diversos grupos envolvidos nela, o que nos dificulta o reconhecimento dos diferentes projetos reivindicados e a autoria das violências sofridas pela sociedade síria – englobando os diversos grupos dentro do território nacional. No entanto, o que é invisibilizado nesse meio não perpassa apenas pelos movimentos civis organizados na resistência e seus projetos de nação ou independência, ou pelos grupos políticos étnicos e religiosos com menores representações.
O que vem passando despercebido, principalmente, são os indivíduos que têm suas vidas atravessadas pelo conflito e convivem com ele cotidianamente. As narrativas sobre o contexto, para além de simplificadas em narrativas heróicas de maniqueísmo ocidental, despersonalizam e desumanizam sírias e sírios a ponto de não termos contato com o cotidiano das pessoas que tiveram suas vidas atravessadas pela guerra, que se arrasta há mais de dez anos.
São aproximadamente 13 milhões de pessoas deslocadas em virtude dos conflitos ao longo dos anos. Segundo o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), desse total, cerca de 5,6 milhões saíram do país e 6,9 milhões estão dentro do território nacional, porém fora de seus locais de origem.
A cultura, portanto, aparece como um meio de nos aproximarmos de narrativas pessoais daqueles que foram deslocados, expulsos e tiveram suas vidas afetadas. Narrativas que quebram com a banalização e a naturalização de uma guerra que perdura há mais de dez anos, que nos aproximam das agências daquelas e daqueles que se envolveram com o conflito, mas que não podem ter suas existências limitadas a ela. Suas trajetórias de vida nos conectam e nos recordam de todas e todos que tiveram – e têm – suas vidas atingidas por uma calamidade.
Ao ler literaturas históricas que convergem com diversos contextos da história de diferentes povos, etnias, Estados nacionais etc., não é de se espantar que tenhamos a possibilidade de entender eventos históricos sob a perspectiva de trajetórias individuais, comunais e familiares, e assim, nos conectar com as narrativas. Dessa forma, temos a literatura como uma forte aliada dos estudos sociais e humanos, possibilitando o entendimento dos processos históricos – quando tratamos das literaturas baseadas nos acontecimentos sociais e políticos –, e dos contextos de produção – quando tratamos de ficções que muito nos informam sobre seus autores e as localidades retratadas.
Débora Pinese Frias
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História (UNIFESP). Membro do Laboratório de Estudos Orientais e Asiáticos (LEOA-UNIFESP) e participou da comissão organizadora e idealizadora da I Jornada Afroasiática de História (UNIFESP), ocorrida no segundo semestre de 2020.
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