O lançamento das novelas de Ghassan Kanafani pela editora Tabla neste ano traz consigo não só a iniciativa de traduzir as obras do precursor da literatura de resistência palestina, mas também uma boa discussão para a teoria literária: o que é uma novela? 

E, afinal, por que estas obras são classificadas como novelas e não como romances ou contos? Desse modo, traçaremos aqui uma breve discussão sobre a polêmica e periférica estrutura narrativa que é a novela para a teoria literária.

Terminologia

A terminologia para designar conto, novela e romance recebe uma inconsistência muito grande quando comparamos a língua portuguesa com o inglês, francês, espanhol e italiano. Vejamos: romance é usado no inglês para designar a forma narrativa do século XVI ao XVIII. No entanto, no século XIX, adota-se o termo novel para designar o romance moderno, o que gera uma certa confusão aqui no Brasil, afinal, novel corresponde ao romance, em língua portuguesa, e não a novela. A confusão terminológica se dá não só na correspondência entre os termos, mas também no erro de tradução, vejamos o caso do espanhol: a língua utiliza a terminologia novella corta para designar o que corresponde a novela no português, no entanto, quando o tradutor opta por traduzir novella corta de forma literal, ou seja, “novela curta”, gera uma nova tendência ao erro, propondo uma subdivisão do gênero novela em português, nesse caso, em curta e longa. Ainda no século XIX, o tradutor da obra de Eikhenbaum, ao analisar Edgar Allan Poe, fundador do conto moderno, opta pela adoção do termo novela, como termo equivalente a short story. No entanto, em português, a terminologia correta seria “conto” e não “novela”.

Essa confusão entre as terminologias para diferentes estruturas narrativas se estende até os dias de hoje e o próprio mercado editorial contribui para isso, uma vez que se recusa, muitas vezes, em usar o termo novela, optando sempre pelas duas formas canônicas, o romance e o conto.

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Conceito de Novela

A caracterização da novela recebe um tom pejorativo por parte da teoria literária, já que é posta como um meio-termo entre o conto e o romance. A definição mais superficial e negativa se dá ao dizer que a novela é maior em extensão do que o conto e menor em extensão do que o romance. Definição essa, bem rasa, que não explora e não dá valor algum ao gênero. Outra forma de torná-la inferior ao romance é dizendo que a novela é “aventuresca”, ou seja, tem como pauta maior a fantasia, descartando o fundo crítico, psicológico e reflexivo, normalmente atribuído ao romance.  É verdade que romance e novela possuem públicos diferentes, no entanto, dizer que um apresenta maior fundo crítico do que o outro é desmerecer a fantasia como forma de expressão de arte literária. Nem sempre uma fantasia é simplesmente uma fantasia. Fantasia também carrega crítica e expressão social. Isso também serve para o romance, afinal, dizer que o romance é um gênero burguês é indubitavelmente um estigma que, uma hora ou outra, foge dessa definição. 

Mas, afinal, o que caracteriza então uma novela por essência? Na verdade, nenhum gênero segue à risca suas próprias características; ora as apresentam, ora não. Há, por exemplo, contextos em que uma obra pode ter tanto características da novela quanto do romance, é o que denominamos de polimorfia. Desse modo, para fins introdutórios, deixemos algumas dessas características que podem aparecer (ou não) nas novelas em geral:

  1. Ênfase na ação: a novela focaliza múltiplos conflitos na trama, e cada um desses conflitos são nomeados como células dramáticas. O conto, por exemplo, tem por essência uma única célula dramática, ou seja, um único evento. Já o romance, apresenta várias células dramáticas, embora tenha  o foco numa célula (a personagem protagonista). Quanto à novela, há uma pluralidade dramática, várias células encadeadas sem focar num único evento, o que a difere das estruturas anteriores. Logo, a novela não tem um rigor de foco só na protagonista ou em um único evento. Esse gênero pode focar no evento, na ação, na peripécia, na personagem ou em todas as células mencionadas anteriormente.
  2. Sucessividade das células: das células definidas no tópico anterior, a novela é caracterizada pela sua sucessividade, ou seja, os eventos são encadeados, tal como “uma pulseira enrolada uma na outra”. Vale lembrar que essa horizontalidade não segue de forma canônica na novela, afinal, já abordamos acima que essas características podem ou não existir numa determinada obra. A mudança de uma célula para outra não esgota a ação ou inicia outra ação na célula seguinte, na verdade, todas as células da novela estão entrelaçadas entre si. 
  3. Multivocidade: a novela apresenta o caráter multívoco, ou seja, não há um olhar uno para uma única personagem ou para um único evento. No romance, vemos que o protagonista continua protagonista, já na novela, um protagonista pode virar coadjuvante na célula seguinte ou vice-versa. 
  4. Espaço Novelesco: a novela tem o espaço narrativo como um elemento suporte, ou seja, ele não influencia tanto na ação da personagem ou do evento, tal como ocorre no romance roseano, onde o sertão toma voz na narrativa, com constante diálogo, do início ao fim, com a trama e com a personagem. Vale dizer que na novela há uma múltipla espacialidade e, com isso, esse espaço pode mudar conforme a célula dramática. 
  5. Tempo:  Alguns teóricos definem que o tempo de escrita da novela é o pretérito, mas muitas vezes encontramos a novela escrita no presente. Vale salientar que não se trata do presente comumente entendido por nós, na verdade, denominamos de presente histórico. Tempo esse que conta algo do passado em tempo presente. Tomemos como exemplo uma exposição de um fato histórico sendo contado em tempo presente. 

E as Novelas de Kanafani?

Quando dizemos que a novela tem um foco maior no evento, na ação, na peripécia ou na personagem, identificamos essa convenção na novela Homens ao sol. Nesse caso, o foco está no evento. Esse evento marca a trajetória de três homens palestinos em busca de melhores condições de vida no Kuwait. No exílio, Abu-Qays, Assaad e Marwan se conhecem por conta do objetivo em comum: a fuga. Como podemos ver, tudo gira em torno desse evento. A fuga serve de encontro para os personagens e para o desenrolar da narrativa. Outra questão é a espacial. Diferentemente do romance O arador das águas, por exemplo, onde o espaço é uno e a narrativa se desenrola em torno de Beirute, em Homens ao sol, o espaço se altera conforme a mudança das células dramáticas.

Umm Saad, outra novela traduzida pela Tabla, difere-se de Homens ao sol na ênfase ao tipo de ação. Aqui a ênfase não se dá ao evento, tal como no anterior. A ênfase se dá na personagem. As células dramáticas se desenvolvem a partir de Umm Saad, personagem que dá nome ao livro. Essa personagem carrega uma ambientação em constante diálogo com a temática da geração. Utilizo “geração” para dizer desenvolvimento. Umm Saad é chamada pelo nome de mãe (Umm Saad pode ser traduzido como “a mãe de Saad”), ou seja, da genitora. Em segundo lugar, Umm Saad está relacionada com a terra, com a natureza. Desse modo, Umm Saad não só é genitora do seu filho, mas também, da narrativa e da resistência palestina. 

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