Em 2013, o The Institute for Palestine Studies, publicou um texto chamado “Lembrando Ghassan Kanafani ou Como a nação nasceu da contação de histórias” (Remembering Ghassan Kanafani, or How a Nation was Born of Storytelling) em que o intelectual libanês Elias Khoury, autor de Meu nome é Adam, escreve sobre a ocasião dos 40 anos da morte de Ghassan Kanafani. 

Khoury relembra que, certa vez, contou a Kamal Nasir que, após ler a elegia de Mahmud Darwich escrita para Kanafani, teria se perguntado:

“O que mais um poeta pode escrever depois disso? O que restará para eu dizer quando minha hora chegar?” 

O que ele não suspeitava era que a elegia se tornaria um gênero permanente e inerente à literatura palestina. Quando Nasir também morreu no “massacre de Verdun”, evento que também tirou a vida de Kamal Adwan e Mohammad Yusif alNajjar, Darwich dedicou ao amigo outro poema, chamado “Casamento palestino”. A poesia, segundo Khoury, teria transformado a elegia, um gênero essencialmente trágico e triste, em “um ato de amor, paixão e esperança.”

A editora Tabla traz, em livre tradução, alguns trechos do texto ou, como ele mesmo gostaria de chamar, da elegia de Elias Khoury a Ghassan Kanafani:

“Quarenta anos se passaram desde o assassinato de Kanafani. A sua ausência também se tornou silêncio; Kanafani ganhou seu lugar de direito na paisagem de nosso espírito, onde o lugar e o não lugar se entrelaçam. Não é por acaso que Edward Said intitulou seu livro de memórias de Out of Place (Fora de lugar), afinal, essas três palavras sintetizam a ambivalência entre lar e exílio, algo que está no cerne da experiência palestina. O exílio molda a noção do lugar ausente — a Palestina — seja na imaginação, na escolha das palavras ou no desejo de liberdade. No contexto da Nakba, este sentimento que perdura é permanentemente recriado nas possibilidades da vida e nas reformulações do sentido da morte. A morte se torna, assim, parte da vida e não sua antítese.”

Elias Khoury aponta que “a noção de lugar é particularmente importante na obra de Kanafani, uma vez que suas novelas, em especial Homens ao sol (1962) e O que lhes restou (1966), não apenas recuperam o nome do lugar que ele figurativamente se refere como ‘a triste terra das laranjas’”, como também “delineiam os limites de um território árabe que exclui os palestinos”.

Em consequência disso, a Palestina se torna “uma realidade intelectual e política na construção simbólica” no interior das novelas de Kanafani, do mesmo modo que “revelam como as fronteiras moldam o destino”. Em Homens ao sol, por exemplo, a fronteira entre a Jordânia e o Iraque aparece como “um pesadelo desértico aterrorizante e infestado de ratos”, enquanto a fronteira iraquiana do Kuwait é prefigurada como “o local de uma morte silenciosa no calor infernal.” 

Já em O que lhes restou, o deserto de Negev, localizado entre Gaza e Jordânia, se apresenta como um lugar onde “nada além do brilho da morte sobrevive”, tornando-se o ponto de encontro silencioso do protagonista palestino e do soldado israelense. Para Elias Khoury, o traço comum que define as duas novelas é, portanto, o deserto, que ao mesmo tempo em que é apresentado através “da aridez, do calor, da miragem e da morte”, expressa “as fronteiras políticas e militares que mantêm o palestino fora de seu lugar”, tal como projetava Said. 

Ghassan Kanafani era membro do comitê central da Frente Popular de Libertação da Palestina (PFLP) e fundador/editor de um jornal semanal bastante conhecido. Antes da criação da FPLP, ele havia atuado no Movimento Nacionalista Árabe (ANM). Entretanto, a adesão política e intelectual do jovem militante ao nacionalismo árabe teria entrado em confronto com a busca do escritor por sua identidade palestina, o que, de acordo com Elias Khoury, teria se perdido nos processos de colonização que resultaram numa ininterrupta transformação dos territórios árabes em Estados-nação discretos, traçados, muitas vezes, “com areia”. 

O autor libanês da trilogia “Crianças no gueto” nota que essas duas novelas de Ghassan Kanafani prenunciam a figura “do escritor [que] transcende a noção de fronteiras e vai ao encontro da morte com firmeza”. Destaca também que nas obras subsequentes, escritas após o surgimento da Resistência, Kanafani vai de encontro a este sentimento “na busca de uma pátria, tanto real quanto espiritual”. Como exemplo, Khoury menciona Retorno a Haifa (1970), que retrata os caminhos de construção de uma “nova noção de Palestina não baseada no anseio por um passado perdido, mas em um tipo de realismo social que Kanafani teria recuperado dos escritos de Gorki”, autor russo, nascido em território ucraniano. Teria sido também sob esta influência que Kanafani escrevera o conto On Men and Rifles (Sobre homens e rifles – 1968) em que criara o arquétipo da mãe palestina em Umm Saad (1969). Por fim, Elias Khoury escreve:

“Estou convencido de que a construção da ideia de fronteira foi fundamental para redefinir a identidade palestina após a Nakba. Para um palestino, não havia outro lugar além da Palestina. A visão nacionalista árabe, de recuperar a pátria perdida por meio de uma ação militar, trouxe novas fronteiras que significaram morte para os palestinos, tanto literal quanto metaforicamente.”

Para ele, é somente após a derrota árabe, de 1967, que se torna evidente a única alternativa dos palestinos: lutar contra a ocupação e contar apenas com seus próprios esforços na luta de resistência.

“Se olharmos para as duas novelas como escritos sobre fronteiras, fica claro que suas dimensões simbólicas – as três gerações palestinas, a figura do motorista e o caminhão-pipa em Homens ao sol; a busca pela Mãe, a traição de Zakaria que subjuga sua Maryam em O que lhes restou – não são meros artifícios narrativos, mas figurações inerentes à própria história da Palestina.”

“Em outras palavras”, finaliza, “não há identidade fora do horizonte da relação com a terra.”

*O texto original na íntegra foi publicado no Journal of Palestine Studies (vol. 42, n. 3, 2013). Leia aqui.

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