(Texto produzido para a orelha do livro O tumor, Ibrahim Al-Koni)

O tumor, de Ibrahim Al-Koni, é um romance iniciático para leitores que, sem a poética da transcriação tradutória de Mamede Jarouche, não poderiam apreender a fantasmática e fantástica atmosfera do deserto de Al-Koni, sua areia, rochas, oásis e personagens improváveis. Nele não se poderia habitar sem o socorro do Alto, deuses ou anjos guardiães. O deserto de O tumor, porém, é aquele do qual “os deuses já partiram ou ao qual ainda não chegaram”.

Não por acaso, as epígrafes da abertura enunciam: “E se acaso o teu Deus disser aos arcanjos: ‘Colocarei na terra um líder’, eles dirão: ‘Porventura vais colocar nela alguém que a corrompa e faça verter o sangue, enquanto nós oramos em Teu louvor e Te glorificamos?’ e Ele dirá: ‘Eu sei o que vós não sabeis’” (Alcorão 2, 30); e

“Não ameis o mundo nem as coisas do mundo. Se acaso algum dentre vós amar o mundo, não terá o amor do Senhor” (Primeira Epístola de João 15, 2).

Neste livro, em que se reconhece a condição do desamparo moderno, se está “mais desvalido que o homem das cavernas”. Até porque os mensageiros desta fábula são emissários kafkianos, portadores de uma Lei de que se desconhecem o sentido, a origem e a destinação, pois se trata de um mundo sem a garantia de um princípio de razão suficiente.

Suas personagens são mais sombras que “reais”; seus diálogos, mais monólogos que comunicação. Em O tumor se está entre corpos de uma materialidade incorpórea, metaforizados na túnica do Líder-governante, que duplica a insolação do deserto na pele, em circunstâncias demoníacas. A túnica, aderida ao corpo, provoca o tumor que queima e vai exaurindo as palavras e a vida. 

O tumor é uma narrativa que inverte, mimetizando-o, o gênero sapiencial da tradição clássica, que, descontextualizada, perturba o espaço e o tempo, em uma inquietante atemporalidade.

E porque O tumor desrealiza o real para realizá-lo, o deserto é o contrário de um espaço aberto e infinito. Remover a túnica é sem saída: ou hemorragia ou os suplícios da acídia, com o que se instala o leitor na desordem atual do mundo.

Olgária Matos, na orelha de O tumor

Olgária Matos

Olgária Matos é uma professora, filósofa, escritora e pesquisadora no campo da Teoria das Ciências Humanas. Sua tese de doutorado Os arcanos do inteiramente outro ganhou o Prêmio Jabuti de Ciências Humanas em 1990, quando foi lançada pela editora Brasiliense.

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