“Um totem representando a desintegração de seu passado, um memorial aos erros de uma nação e aos pecados de uma família.” Essa frase de Uma mulher estranha, primeiro romance da escritora e ativista turca Leylâ Erbil (1931-2013), publicado em 1971, poderia definir este livro fascinante e atual, do qual se destaca uma voz feminina que põe em xeque os papéis da mulher, da religião e do sistema político de seu país.

Em Uma mulher estranha, escrito num período em que o sistema político turco estava fragilizado depois de ter passado por um golpe militar em 1961, Erbil, além de explorar esse momento histórico, destaca a paralisia do povo diante dos acontecimentos do país. Nesse cenário conflituoso, uma pergunta se apresenta: quem é essa mulher estranha? É assim, por exemplo, que os vizinhos se referem à mãe da protagonista, a qual não deu nenhum herdeiro homem ao marido. Essa mulher estranha é também a moça que perde a virgindade com o próprio irmão, e a estudante que se envolve com o partido de esquerda e luta para libertar o povo que ela diz amar. 

Incorporando os dilemas e tabus da sociedade turca à sua escrita, Erbil nos presenteia com um texto experimental tanto no conteúdo quanto na forma: a fragmentação do mundo moderno é reproduzida num discurso não linear e multivocal. O tratamento não convencional que a linguagem recebe no romance ousa expandir os limites do idioma turco. Vale apontar aqui o uso inovador que a autora faz de sinais de pontuação, como a sequência de três vírgulas, recurso hoje conhecido como “garra do leão”. Tudo isso aliado a um humor ácido (que beira o surreal), numa narrativa em que a quebra das convenções corresponde a uma maneira revigorada de se compor uma escritura — qualidades que levaram Leylâ Erbil a ser a primeira escritora turca indicada ao Prêmio Nobel.

Agora o público leitor brasileiro tem a oportunidade de conhecer a inventividade e a profundidade da voz de Leylâ que, desde o título deste livro, nos coloca em confronto com tudo aquilo que pode suscitar as mais profícuas reflexões trazidas pela condição do “estranho”.

Dirce Waltrick do Amarante

Dirce Waltrick do Amarante

Ensaísta, tradutora e escritora. Professora do Curso de Artes Cênicas da UFSC e do Curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (UFSC). Tem livros publicados na área de tradução, teoria literária, teatro e literatura infantil e juvenil. Coedita a Revista de Arte e Cultura "Qorpus" (ISSN 2237-0617). Com Vitor Alevato do Amaral, lidera o grupo de pesquisa Estudos Joycianos no Brasil. É membro do Núcleo de Pesquisa de Estudos sobre Samuel Beckett (USP). Organiza o Bloomsday de Fpolis, com o prof. Sérgio Medeiros (UFSC) e com a profa. Clélia Mello, desde 2002. Colabora em jornais e revistas de circulação nacional.

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