Em memória da minha avó Saide Antum Mhereb
e de todo o povo palestino-libanês que, 
perto ou longe de sua terra natal,
será sempre rio, floresta e deserto, 
montanhas, mares e vales
por onde a vida persiste.

Era um domingo de abril, já fazia alguns meses que eu procurava conterrâneos libaneses em Paris. Na verdade, desde a minha chegada na cidade, a cada sinal do Líbano, eu parava em busca de não sei quem nem o quê. Alarme de incêndio soado pela minha origem inquieta.

Havia uma feira de rua, com antiguidades e outros produtos bem no meio do Boulevard de Clichy. Os Arquivos sentimentais de uma guerra no Líbano estavam lá: um quadrado vermelho, numa banca de discos.

Poeta libanesa de expressão francófona, crítica e editora literária de expressão árabe, Nadia Tuéni teve sua obra condecorada pelo prêmio literário libanês Said Akl, pelo prêmio Archon-Despérouses da Academia Francesa e pela honraria também francesa da Ordem da Pléiade. Nenhum desses atributos, no entanto, a tornou menos invisível para nós no Brasil. Na farsa do futuro que mimetiza o passado, a trágica atualidade de sua poesia é a guerra que fratura agora o Oriente Médio.

Nascida em Beirute em 8 de julho de 1935, a poeta faleceu aos 47 anos não muito distante dali, em Beit Mery, vítima de um câncer, em 20 de junho de 1983 — um ano depois da invasão israelense ao Líbano. Uma década e meia depois, a guerra civil interrompia-se provisoriamente com o acordo entre Israel e as falanges cristãs maronitas; os massacres de Sabra e Chatila dão a dimensão do feito terrível: milhares de soldados e civis mortos, ruínas por toda parte, a expulsão da Organização para Libertação da Palestina (OLP) do sul do país, refugiada na Tunísia, o esmagamento das correntes políticas seculares e a formação do Hezbollah como frente de defesa popular nacional.

Fosse outra a história do Líbano — da Palestina, sua irmã, e de todos os povos subjugados pela força das armas —, outros seriam os versos de suas e seus poetas.

Escrito em francês ao sopro do árabe, Arquivos sentimentais de uma guerra no Líbano é o último livro de poemas publicado em vida por Nadia Tuéni, naquele fatídico ano de 1982.

Inútil — quiçá perverso — insistir no esquecimento, Nadia Tuéni fez de sua poesia arquivo e memória da guerra e de si. Sua história é a história do Líbano; sua vida, a vida das paisagens fustigadas pelo sol e pelo sangue, acariciadas, de noite, pela lua e pelo vento.

Nessa poesia lírico-histórica, em que a história de uma vida é a história de uma terra, imagens oníricas, melodia e silêncio compõem poemas agrupados em três partes, em cruzamentos de épocas: “Ontem: o jardim do Cônsul”, “Depois: louca terra” e “Hoje: o futuro do meu tempo”, num compasso espiralar em que o tempo em linha reta jamais existiu. Os poemas que você lê aqui fazem parte da primeira parte de seu Arquivos sentimentais. O “Prólogo”, escolhido pela poeta, integra outro poemário seu, Poemas para uma história, publicado dez anos antes, em 1972.

Filha de mãe francesa e pai libanês, Nadia Tuéni era paragens em trânsito, entre línguas e culturas, do Oriente ao Ocidente. Filha de mãe brasileira e pai libanês, eu a conheci quando, sozinha, estudava árabe na França, sustentada pela bolsa de estudos de um doutorado em tradução. Nos poemas de seu livro, encontrei silêncios da minha história, e gritos, altos, muito altos, da história que é nossa.

*Os poemas abaixo compõem a primeira parte do livro Arquivos sentimentais de uma guerra no Líbano, de Nadia Tuéni, publicado pela primeira vez em Beirute, em 1982.

ARQUIVOS SENTIMENTAIS DE UMA GUERRA NO LÍBANO
NADIA TUÉNI

tradução: Maria Teresa Mhereb

EM TRÊS PARTES:

I. Ontem: o jardim do Cônsul
II. Depois: louca terra
III. Hoje: o futuro do meu tempo

PRÓLOGO

Morreram aos montes
quero dizer, sós
sobre a mesma potência a que se chama território 
seus olhos argilas ou cinzas carregam da montanha
a vida como refém.

Então a noite
a noite até a manhã
depois de novo a morte
e seu último suspiro deposita no espaço o fim da palavra.

Quatro sóis montam guarda para impedir
o tempo de inventar uma história.

Morreram aos montes
sem tocar-se
sem louro na orelha
sem querer
uma voz tomba: é o ruído do dia sobre o duro chão.

Crês mesmo que a terra se acostuma a girar?
Para ser mais precisa, morreram aos montes
por precisão de morrer
como uma porta se fecha ao sopro do vento
ou quando o mar pela boca nos entra inteiro…

Então
morreram todos juntos
quero dizer, sós, como haviam vivido.

“Poemas para uma história”, 1972

I. ONTEM

o jardim do Cônsul

O direito de amar a terra é imprescritível.

*

Eu vivia na casa em face
face à guerra e ao Jardim
de mortos plantados e roseiras amiúde,
ancestrais esquecidos na dinâmica dos ataúdes, 
a memória em um cubo. 
Sob a varanda de um olho, a metade de um corpo,
o outro na calçada faz um ângulo torto. 
A metade de um corpo, signo isolado em meu afresco de ódio.

*

Ó, noites de nossos planos, 
os Viajantes do Oriente contam suas gentilezas
nos dedos de um ano.

O vento e seus aliados
se abrem como uma mulher.
E tudo fala de tudo.
Os ruídos que imagino são de riachos ou soluços.
Ah, sol da noite, és livre como a morte,
diria nesse instante quem olhasse para dentro de si.
Assim encerrei sob minha língua um país, 
que guardei como uma hóstia.

*

Poetas, pequeninas, princesas em portância,
amor desordenado do olho por sua infância.

No dia de lua cheia do mês de Ramadã,
neste ano de números positivos,
o cônsul tem seus artifícios.
Faz uma noite de nômade
e o vento quente que antecede os sonhos.
O céu dorme em seus detalhes,
um pássaro se espreguiça,
outro se atiça,
e os astros-mandruvás entram pelos cérebros.
A pedra perdeu a palavra.
Amor do cônsul pelo arabesco de uma ruga
sobre a geografia do Líbano.
Naquele tempo, ó, Tempo,
confiei a ti minha paisagem.

*

Nós todos lutamos
pelo prazer de aprender
o orgulho de morrer.

Fragmentos de vento,
esquálida calma das manhãs
entre duas frações de cidade.
“Lutas aguerridas”.
“Novas mediações”.
“Partes envolvidas”.
Assola nossos vinte anos o asfalto das estradas
que vão da esperança à violência
como outrora
nossa adolescência.
O outro lado (pode alguém escolher sua demência?)
sangra mil rosas.
ATIRA-SE EM UMA IDEIA E MATA-SE UM SER.
Sempre escarlate a potência silenciosa da palavra, 
mais mortífera que um gesto.
Os que vivem sob o sonoro sol das palavras
montados em cavalos de slogans,
estes
estilhaçam as vidraças do universo.

*

Triste é tantas vezes que
a imagem corte a fala.
Sílex contra sílex,
duas mentes e seu ângulo.

Os mortos têm direito
a um grande retrato preto
sobre um belo muro branco,
à lembrança no dia de ano,
ao discurso dos viventes.
A doce amiga de ontem,
salto agulha e saia ao vento,
mistura uma lágrima ao suor
dos seus novos amores.
Os mortos não têm o cheiro das flores.

Grandes aves escovavam o céu
na alvorada; e dos corpos dos amantes,
lentamente, a roseira como uma reza.
Em Beirute, a guerra.

Maria Teresa Mhereb

Maria Teresa Mhereb é apenas uma entre as milhões de pessoas que compõem a comunidade libanesa dentro e fora do Líbano. É tradutora e pesquisadora, graduada em Ciências Sociais pela Unesp e em Letras pela USP, onde faz doutorado em Estudos da Tradução e é uma das coordenadoras do Grupo de Pesquisa em Feminismos, Gênero e Tradução (GRETAS-CNPq).

Como tradutora, dedica-se especialmente a textos políticos, sociológicos e ambientais. É integrante do Coletivo Sycorax, dedicado à tradução de obras feministas anticapitalistas, e do Coletivo Baubo de tradução feminista.

Organizou e traduziu livros diversos, de autoras e autores como Eleanor Marx, Louise Michel, Silvia Federici, Sylvia Pankhurst, Maria Mies, Michel Löwy, entre outros.

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