Hoje, faz cinco meses que não saio de casa. Não, mãe, não se preocupe, não estou doente. É que estamos numa quarentena, você sabe como é isso, ficar com medo de sair de casa para não morrer, já vivemos uma guerra juntas, você se lembra, mãe, daquele dia, quando falaram que teríamos uma trégua de 24 horas, e por isso, deixamos o abrigo comunitário e fomos para nossa casa querendo ficar um pouco a sós, e eu te convenci a me deixar ir ao mercado para pegar alguns tomates e hortelã para fazermos tabule, porque desde pequena eu lhe dizia que o tabule cheira a verão e a vida, e você, nada dizia, apenas sorria. Eu fui num pé para voltar no outro, mas o bombardeio começou e tudo de que consegui depois me lembrar era que fiquei mil horas escondida atrás de caixotes de alface no mercado. Ai, minha mãe, ainda me lembro, eu consegui voltar, porém sem tomate nem hortelã, mas não te encontrei dentro da casa de portas escancaradas e feito louca corri para fora, dei a volta em torno da casa, temendo a qualquer momento ver um corpo estendido no chão. Mãe, eu gritava, ninguém respondia, apenas o eco do meu desespero. Eu sei, mãe, você não quer se lembrar disso, e na verdade nem eu, mas esta situação, mãe, a incerteza e a falta de perspectiva de hoje me transportaram àquele tempo, e também porque está chovendo e sempre que chove aqui, eu sinto o cheiro da terra de lá. Mãe, eu preciso de seu peito, porto seguro do meu errar.
Querida mãe, não sou mais sua “passarinha que saltita”, nem aquela jovem com quem você gritou quando finalmente nos encontramos de novo no abrigo, após a terem resgatado e levado para lá, quando cheguei, e te vi, desesperada, puxando os cabelos e golpeando o peito porque achou que havia me perdido, que eu teria sido atingida por algum estilhaço e morrido no mercado. Mãe, naquele dia, nasceu um cabelo branco na minha cabeça, aos dezenove anos de idade. Sim, mãe, você gritou comigo: “Nunca mais, nunca mais sai de perto de mim”! É, mãe, eu sei que mais tarde, cientes que estávamos vivas e juntas, chegamos até a rir, talvez de nervoso, sei lá mãe, as atrocidades das guerras levam sempre um pouco de nossa sanidade. Rimos de como você achou que eu tinha morrido e como eu achei que você tinha morrido, mas também naquela noite, dormimos abraçadas, indiferentes às bombas que devastavam o lá fora. Sabe, ontem mesmo lembrei disso quando resolvi cuidar das minhas poucas plantas que tenho no peitoril da janela, o único vestígio da natureza que ainda posso contemplar aqui dentro. Enquanto meus dedos reviravam a terra, lembrei daquele mesmo dia, quando me joguei no chão embaixo da figueira, onde avistei seu lenço largado ali, e comecei a arar a terra com meus dedos à procura de sangue, achei que teria sido atingida e levada por alguém para algum lugar. Ai, mãe, não quero mais falar disso, quero lhe contar o que tenho feito todo esse tempo e como meu mundo se reduziu, ficou do tamanho do meu pequeno apartamento, ou melhor, como meu quarto acabou sendo o mundo.
Mãe, eu tenho lido muitos livros. Foi você quem me ensinou a gostar de ler. Noutro dia me peguei sentada na cama devorando um livro, exatamente como você fazia. Aliás, já não é de hoje que todos dizem que a cada dia que passa fico mais parecida com você. Sabe mãe, nesses cinco meses, eu quase não olhei no espelho, e não olho mais para fora quando abro a janela de manhã para arejar meu mundo, como se não existisse mais nada além do vidro da janela. Tudo bem, mãe, tudo bem, não fique triste, não estou deprimida, só um pouco desanimada. Dentro dos livros eu encontro mundos incríveis, amplos, têm céus azuis, peixes coloridos e histórias de amor, mesmo sem finais felizes, mas é assim, as verdadeiras histórias de amor nunca têm finais felizes, não é? E ontem à noite, eu cheguei a conhecer uma cidade que fica à beira mar, onde todos os habitantes tinham olhos azuis, comiam peixe todo dia e, de noitinha, cantavam para as ondas antes de irem dormir. Eu vou te contar, mãe, nos livros que tenho lido, tenho encontrado também muita dor e tenho sofrido muito e às vezes acho que estou ficando um tanto confusa, estou com medo de estar perdendo a razão.
Você deve se lembrar, mãe, de quando eu era uma menininha, de tranças loiras e sardas no nariz, eu brincava de professora e meus alunos eram hortênsias sentadas em grandes latas de leite em pó; eu segurava uma varinha na mão e batia nesses meus alunos, quando não acertavam a resposta. Eu me lembro, mãe, que você colocava a cabeça para fora da janela e, sorrindo, me dizia para não bater nos alunos, haram, tadinhos, você lamentava! Lembra mãe, quando cresci mais um pouquinho e você me deixou soltar os cabelos e as sardas sumiram do meu rosto, eu lhe dizia confiante: “mama, você vai se orgulhar de mim, eu vou ser uma escritora”. E você, com seu sorriso sempre triste, me dizia: Inchalla, ya mama!
Mãe, como você bem sabe, sobrevivemos àquela guerra e partimos juntas. Aqui, depois de me casar, você me deixou e partiu sozinha, e depois veio outras vezes para me visitar, mas durante cada ausência tua, eu envelhecia mais um pouco. Mãe, sabe que meu cabelo está quase todo branco? Eu rio aqui sozinha, porque te ouço dizendo “de tanto estudar!” Não mãe, acho que é a idade mesmo, os dias varrem a cor aos poucos. Eu te falei, não sou mais sua “passarinha”, tenho na cara e na alma mais rugas que as linhas das páginas que leio.
Então, mãe, você sabe que virei mesmo professora de gente grande, mas talvez não saiba que agora, eu sou também escritora! Tenho certeza, mãe, que se pudesse ver meu nome nos livros, você ficaria muito orgulhosa. Na verdade, eu não sou escritora, dessas que escrevem os próprios livros e os publicam ou não. Eu sou escritora de livros que os outros escrevem e publicam. Viu mãe, não falei que estou ficando confusa! Eu sou tradutora, mãe! Quer dizer eu leio, escrevo e sofro; ser tradutora é isso. Ai, mãe, se soubesse como é difícil reescrever as histórias das pessoas em outra língua. Pois é, mãe, eu sei, que você vai me dizer suspirando que teria sido bem mais fácil e melhor para mim, se tivesse tido filhos, que no mínimo seriam um alento na velhice. Já envelheci, mãe, e não tive filhos, mas eu leio e escrevo sobre alguns, e quando traduzo suas histórias, eu digo, ainda bem que não os tive, não há dentro de mim espaço para mais sofrimento.
Mãe, queria lhe contar sobre esse último livro que traduzi. Eu não gostaria que você lesse. É muito duro mãe, essas pessoas que foram expulsas de suas famílias e depois cuspidas por seus países. Eu sei, mãe, vai me repreender por ter dito “cuspidas”, mas, mãe, elas foram “cuspidas”! Eu chorei muito, mãe, chorei com meus olhos e com os delas, chorei porque elas escreveram cartas cheias de aflição, de sonhos rasgados, de dignidades trituradas; confissões que eram para serem ouvidas, enviadas e recebidas, mas não foram.
Eu sei, mãe, que minha carta também não vai chegar, porque eu nem vou enviar, mas não carece, porque eu sempre te chamo quando preciso de seu peito para deitar minha cabeça e você sempre vem, principalmente num dia como hoje. Hoje, o sol não saiu, e sei disso porque o arco-íris que se forma normalmente na parede quando os raios batem e se quebram no vaso de cristal que você me deu, não apareceu esta manhã.
Mãe, eu vou dobrar esta carta e guardar dentro do livro que lhe contei, assim, ela fará companhia às outras cartas e minha saudade se aninhará junto com as outras.
Sabe, mãe, o outro dia, quando eu estava tirando o pó dos livros, porque aqui tem muito pó e eu odeio pó, deixa tudo cinza e não gosto de cinza! Então, deixei derrubar um livro e dele caiu um pequeno cartão, com um desenho bonito de bolo e velas, abri, reconheci sua letra: “Desejo a você, minha passarinha colorida, feliz, feliz vida, hayát saîda, saîda”. Pela data, mãe, eu tinha 22 anos. Já estamos em agosto e daqui a pouco, vai ser meu aniversário de novo, mas desta vez, de 58 anos.
Mãe, agora eu vou olhar no espelho para ver seu rosto no meu. E amanhã, quando abrir a janela, prometo espiar o céu, só para ver você sorrindo para mim.
Safa Jubran é a tradutora de Correio noturno, romance de Hoda Barakat. Inspirada pelo livro, onde os personagens escrevem cartas que nunca chegarão aos seus destinatários, Safa também escreve uma carta que não vai chegar para sua mãe, mas que, como as outras, contém confissões derradeiras e imensa sensibilidade.
Safa Jubran
Safa Abou-Chahla Jubran nasceu em Marjeyoun, Líbano, em 1962, e chegou ao Brasil em 1982. É professora livre docente na Universidade de São Paulo, onde leciona língua árabe desde 1992. Obteve os títulos de Mestre e de Doutor em Linguística na mesma universidade.