Se você pensa que na Holanda só tem gente alta, loira e de olhos azuis, pense duas vezes. A Holanda é multicultural, possui fortíssima imigração turca, iraniana e árabe (de vários países árabes, mas principalmente Marrocos e Iraque). E como este é um blog de uma editora, vamos falar de livros, claro. Mais especificamente, de autores de língua holandesa com origem turca, iraniana e árabe. Vamos dar um passeio?

Irã

Comecemos pelo Irã, com aquele que é, provavelmente, o mais famoso da chamada literatura de migração da Holanda, o iraniano Kader Abdolah (1954). Traduzido para mais de 40 línguas, best-seller na Europa toda, Abdolah fugiu do Irã para Holanda aos 30 anos, aprendeu holandês já adulto, do zero, e passou a fazer literatura nessa língua. É dono de uma bibliografia enorme, sua obra inteira gira em torno do Irã e do mundo árabe em geral. Seu principal romance é Het huis van de moskee (A casa da mesquita, 2005), onde acompanhamos uma família iraniana durante a revolução iraniana. Este livro foi votado pelos leitores do jornal NRC (uma espécie de Folha ou Estadão) como o segundo melhor romance da história da Holanda.

Mas a imigração não é só iraniana. Passemos ao Marrocos.

Marrocos

A morte de Hafid Bouazza aos 51 anos, no começo desse ano, causou uma verdadeira comoção na Holanda. Nascido em Ujda, no Marrocos, Bouazza mudou-se para a Holanda aos sete anos. Sua obra mais celebrada é Paravion (2003), onde retrata três gerações de imigrantes. As obras do autor sofrem forte influência das Mil e Uma Noites. Mas talvez o livro mais representativo de Bouazza seja Een beer in bontjas (Um urso com casaco de pele, 2001), um ensaio autobiográfico onde fala justamente sobre o que é ficar entre duas culturas. Num tom muito bem humorado, Bouazza diz sofrer da síndrome EHOMNH – Escritores Holandeses de Origem Marroquina com Nacionalidade Holandesa – e passa a refletir sobre o que é ser um escritor com dupla nacionalidade, misturando lembranças do Marrocos com a vida na Holanda e a cultura de ambos os países. Uma palhinha: “Se eu acreditar na maioria dos críticos, então sou um escritor marroquino. Mas não acredito na maioria dos críticos. De acordo com pessoas benevolentes, sou um escritor marroquino-holandês. No entanto, essa designação soa desconfortável. É como andar de chinelo e tamanco ao mesmo tempo – e é bem difícil andar assim.”

Se podemos considerar Bouazza uma espécie de enfant terrible da literatura de migração, por seu tom polêmico e controverso, podemos dizer o contrário de Abdelkader Benali (1975). Também marroquino, Benali, que se mudou para a Holanda aos quatro anos, estourou já com a publicação de seu primeiro romance, o polifônico e divertido Bruiloft aan zee (Casamento à beira-mar, 1996), sobre um irmão que mora na Holanda e retorna ao Marrocos, terra de seus pais, para o casamento de sua irmã. Sua obra, como um todo, é considerada exuberante e cheia de imaginação. Assim como Abdolah, Benali é presença constante na mídia e considerado uma voz mais centrada.

 Mas a imigração não é só marroquina. Passemos ao Iraque.

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Iraque

Nascido no Iraque, Rodaan Al Galidi (1971) teve uma experiência parecida com a de Abdolah. Al Galidi fugiu do Iraque e pediu asilo político na Holanda, onde aprendeu holandês do zero, já adulto. Ao contrário de todos os outros escritores citados até aqui, cujas obras inteiras se passam no Irã ou no mundo árabe, a obra de Al Galidi se passa na Holanda e lida diretamente com todos os problemas dos imigrantes. Seus dois principais romances semiautobiográficos, Hoe ik talent voor het leven kreeg (Como tive talento para a vida, 2016) e Holland (Holanda, 2020), ambos com o mesmo protagonista, alter ego do autor, tratam das dificuldades de um refugiado recém-chegado à Holanda: burocracia holandesa para obter passaporte, a convivência no centro de refugiados (tanto o autor quanto o personagem passaram nove anos no centro), o aprendizado da língua holandesa, conseguir um emprego, lidar com os costumes holandeses, dificuldades de fazer amigos holandeses. De todos os autores aqui citados, Al Galidi é o mais moderno, o mais realista, o mais atual e, ao mesmo tempo, o mais engraçado. Precisava urgentemente ser publicado no Brasil (posso rufar os tambores, Tabla?).

Mas a imigração não é só iraquiana. Passemos à Turquia. 

Turquia

A imensa maioria dos imigrantes da Holanda são turcos e eu poderia fazer uma lista de três páginas só com escritores de língua holandesa descendentes de turcos. Mas destaco apenas um, não à toa, a única mulher da lista:

Um dos grandes fenômenos literários holandeses recentes é o romance autobiográfico Ik ga leven (Eu vou viver), de Lale Gül (1997). Filha de turcos, Lale retrata a convivência em Amsterdã com sua família muçulmana extremamente religiosa e quebra todos os tabus: anda sem véu, bebe, namora um holandês cuja família é antimigração. Um dos livros mais comentados de 2021, a autora virou ícone feminista e best-seller, mas a obra rendeu-lhe diversas ameaças de morte da comunidade turca na Holanda. Por enquanto, o livro só saiu na Itália e na Alemanha – cuja imigração turca também é a maior daquele país –, onde Lale também já recebeu ameaças de morte. O livro está programado para sair nos Estados Unidos e na França em 2023, ganhará adaptação cinematográfica, e espera-se que tenha grande repercussão internacional. 

Minha faixa bônus vai Ramsey Nasr, que nasceu em Roterdã e é filho de palestino. Nasr é uma das figuras mais famosas da Holanda por sua onipresença em diversas áreas culturais: atua, escreve, dirige para TV, cinema, teatro. E na literatura faz prosa e poesia. Alguns de seus textos de não-ficção falam sobre a questão Palestina/Israel.

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Encerro nosso tour por aqui. Espero que você tenha gostado.

Obra de língua holandesa de origem árabe, turca e iraniana na Tabla

Até o conto de Abdelkader Benali sair em Marraquexe Noir, não tínhamos nenhum autor de língua holandesa de origem árabe/turca/iraniana publicado no Brasil. Fora essa grande iniciativa da Tabla, a editora Âyiné comprou os direitos do principal livro de Abdolah, Het huis van de moskee (A casa da mesquita), ainda sem data de lançamento. Espero que seja o pontapé inicial de uma grande leva e que a literatura feita por essas comunidades migre para o Brasil.

Daniel Dago
Daniel Dago, tradutor de holandês e mestrando em Teoria e História Literária pela UNICAMP.

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