Sultanas esquecidas, publicado pela Tabla e escrito pela grande intelectual marroquina Fatima Mernissi, é um livro que busca resgatar a história de mulheres que foram chefes de Estado no Islã. Contudo, quem tem familiaridade com o catálogo da editora já conhece algumas das figuras históricas presentes nesse livro. Pois algumas delas já estavam presentes no belíssimo Samarcanda, do franco-libanês Amin Maalouf, que segue a trajetória do manuscrito do Rubaiyat, de Omar Khayyam, desde o século XI em Samarcanda até o naufrágio do Titanic em 1912. Outro repeteco é a tradução dos dois livros, que foi feita direto do original em francês por Marília Scalzo, que acabou por revisitar esses personagens sob um novo olhar.

Quais seriam, então, esses personagens?

Terken Khatun (1053-1094), esposa de Malikchah, “o sultão seljúcida que fazia tremer Bagdá e seu califa”, foi uma das primeiras mulheres a aspirar ao sultanato. Ela aparece com destaque em Samarcanda, assim como seu marido. Pois é na corte de Malikchah, em Isfahan, que Omar Khayyam vai servir. Lá, o polímata persa conhece o vizir Nizam al-Mulk e, na ficção, é o responsável por apresentá-lo a Hassan ibn Sabbah, o futuro fundador da Ordem dos Assassinos.

O romance de Maalouf concentra-se nesse importante período da história islâmica, que também coincide com a época das Cruzadas na região do Levante. Ou seja, esses e outros personagens históricos também vão aparecer em outro livro de Maalouf, As Cruzadas vistas pelos árabes, que foi recentemente reeditado pelo selo Vestígio.

Terken Khatun, Malikchah e Nizam al-Mulk ocupam apenas duas páginas de Sultanas esquecidas, mas é importante ver como suas ricas histórias são narradas em um livro de não ficção e em um romance histórico. Principalmente porque as disputas sucessórias dentro das dinastias turcas e mongóis são altamente cruéis e espalhafatosas, beirando à sanguinolência de épicos de fantasia como Game of Thrones, de George R. R. Martin.

Mernissi explica que Malikchah tinha origem turca e havia exigido títulos grandiloquentes do califa abássida Al-Muqtadir em troca de proteção, pois este último não conseguia defender nem mesmo sua capital, Bagdá. Já Maalouf conta que Malikchah era filho mais velho de Alp Arslan, segundo filho do sultão do Império Seljúcida, e que este casou seu primogênito com Terken Khatun, que vinha a ser irmã de Nars Khan, o governante de Samarcanda. “Malikchah fora a ponta de lança do Islã, defendendo o sunismo encarnado por Bagdá e seu califa contra os ataques dos xiitas que haviam se tornado uma força perigosa”, resume Mernissi.

“A Chinesa”

Terken Khatun é assim descrita por Amin Maalouf:

“No império seljúcida, no tempo em que ele era o mais poderoso do universo, uma mulher ousou tomar o poder em suas mãos nuas. Sentada atrás de suas tapeçarias, deslocava exércitos de uma ponta a outra da Ásia, nomeava reis e vizires, ditava cartas ao califa e despachava emissários com recados para o senhor de Alamut [nome da fortaleza da Ordem dos Assassinos, liderada por Hassan ibn Sabbah]. A emires que reclamavam vendo-a dar ordens às tropas, respondia: ‘Entre nós, são os homens que fazem a guerra, mas são as mulheres que dizem aos homens com quem lutar.’”

No harém de Malikchah, ela era chamada de “A Chinesa”, nascida em Samarcanda, de uma família originária de Kachgar (importante cidade da Rota da Seda que hoje fica no sudeste chinês). “É, de longe, a mais antiga das esposas de Malikchah”, continua Maalouf. “Quando se casou com ele, ele tinha apenas nove anos; ela, onze. Pacientemente, esperou que amadurecesse. Tocou a primeira penugem do rosto dele, surpreendeu o primeiro sobressalto de desejo em seu corpo, viu seus membros se desempenarem, seus músculos se definirem, majestoso esboço de homem que rapidamente domesticou. Nunca deixou de ser a favorita, adulada, cortejada, honrada, principalmente ouvida. E obedecida. No fim do dia, ao voltar de uma caça ao leão, de uma competição, de um combate sangrento, de uma tumultuada assembleia de emires ou, pior, de uma sessão de trabalho com Nizam, Malikchah encontra a paz nos braços de Terken.”

Em todo o Império, seu único rival era Nizam, com quem ela disputava o poder de governar. Seu trunfo era ter dado à luz ao herdeiro do trono, seu filho mais velho, mas este morreu de uma febre súbita. Com o fim do luto, exigiu que seu segundo filho fosse designado como herdeiro, mas este morreu tão de repente quanto o irmão, também vítima de uma febre. Terken pediu, então, que seu caçula fosse designado sucessor de Malikchah, mas este era pai de outros meninos mais velhos. Dois eram filhos de uma escrava, mas o mais velho, Barkyaruk, era filho de uma prima do sultão e era o escolhido de Nizam. É daí que advinham as disputas entre o vizir e a esposa preferida de Malikchah.

Como o sultão não ousava contrariar Terken, e como não poderia nomear o filho dela como herdeiro, resolveu que não nomearia ninguém, preferindo morrer sem indicar seu herdeiro. Como narra Maalouf, por causa disso, Terken resolveu acabar com Nizam. Correspondendo-se com a Ordem dos Assassinos, pede que eles acabem com a vida do vizir, sendo este o primeiro assassinato realizado pelo grupo, conforme contado em As Cruzadas vistas pelos árabes.

Depois da morte por envenenamento de Malikchah, Terken Khatun tenta assumir o poder, já que o herdeiro, seu filho Mahmud, tinha apenas quatro anos. Como o Islã não permite que o poder seja passado para uma criança, era grande o desafio de Terken se tornar sultana.

Segundo Fatima Mernissi, para que Terken Khatun garantisse a sucessão como almejava, e para poder se defender de outros pretendentes ao trono, ela precisava da cumplicidade do califa Al-Muqtadir, vigésimo sétimo da dinastia abássida, que governou entre 1070 e 1094. Por isso, ela escondeu o falecimento do marido e tentou fazer um acordo com o califa. É assim que a socióloga narra esse pacto:

“O califa começou dizendo que Mahmud era uma criança. Terken deu um jeito de conseguir uma fatwa (um decreto que afirmasse que Mahmud podia reinar apesar do ‘detalhe’ da idade. Mas o califa não estava disposto a deixar uma mulher se instalar no trono, por mais poderosa que fosse. O importante para ele era que a khutba [sermão], privilégio da soberania, não fosse dita em nome de uma mulher. Al-Muqtadir insistiu para que a khutba fosse feita em nome do filho. Isto, no entanto, não era suficiente: também impôs um vizir de sua escolha a Terken, que recusou imediatamente, considerando as condições do califa numerosas demais e muito humilhantes. Ao final, porém, ela acabou aceitando todas as condições do califa, pois sem a garantia de Bagdá não teria nenhuma chance diante de seus rivais.”

Foi assim que Terken Khatun foi impedida de se tornar uma sultana. Mesmo assim, ela era reconhecida como a governante das instituições políticas e militares, e a expressão “Khatun enviou os exércitos para lutar” era usada com frequência, mostrando seu poderio. Em Samarcanda, seus aliados conseguem raptar o jovem Barkyaruq, de treze anos, que reivindicava para si o trono no lugar de Mahmud, de quatro anos.

A morte de Terken aconteceu em Isfahan, em 1094. No romance de Maalouf ela morre sufocada por um travesseiro pelo chefe dos eunucos do seu harém, que era seguidor de Nizam al-Mulk. Ela foi assassinada para vingar a morte do seu mestre. Um mês depois, seu filho Mahmud falece, e o trono vai para Barkyaruq.

Outra curiosidade: Terken Khatun era um nome bastante usado por mulheres na cena política da época. Tanto que Mernissi escolhe chamar outra Terken Khatun, como era mais conhecida na documentação, de Kutlugh Khatun (1257-1282), uma dinastia que governava a cidade de Kirman. Esta sim considerada uma verdadeira sultana (de origem mongol), assim como sua filha, Padichah Khatun.

Paula Carvalho

Paula Carvalho é jornalista, doutora em História pela UFF e autora do livro “Direito à Vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt”

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