Até recentemente, a literatura árabe era pouco conhecida pelo público leitor brasileiro. De modo geral, livros árabes traduzidos para o português eram encontrados de forma limitada em espaços como livrarias, sebos e bibliotecas. Obras árabes tampouco constavam em antologias que reuniam textos estrangeiros em tradução, bem como em cursos voltados à literatura.

Algumas exceções eram textos considerados “clássicos”, como As Mil e Uma Noites. Além disso, foram publicados alguns nomes como Gibran Khalil Gibran (1883-1931), poeta de origem libanesa que imigrou para os Estados Unidos e ganhou notoriedade nas décadas anteriores no Brasil, tendo diversos títulos traduzidos para o português; e Naguib Mahfouz (1911-2006), escritor egípcio, autor de uma extensa obra de ficção e vencedor do prêmio Nobel em 1988.

Se esses escritores receberam algum destaque em publicações no Brasil nas últimas décadas, as autoras, por sua vez, não contaram com a mesma visibilidade. Até alguns anos atrás, escritoras árabes eram pouco traduzidas e publicadas no Brasil e quase não eram contempladas enquanto objeto de estudo de teses, dissertações e artigos acadêmicos, ou em cursos relacionados à literatura árabe.

Em artigo sobre a recepção de escritoras árabes publicadas no Ocidente, a pesquisadora de origem palestina residente nos Estados Unidos Amal Amireh (1) afirma que, no caso de Naguib Mahfouz, as traduções de seus livros são vistas como o “desfecho lógico” após ter recebido o prêmio Nobel, como reconhecimento de suas realizações literárias. Outros escritores árabes que não receberam prêmios também são tidos como dignos de tradução. As escritoras, porém, são vistas com “desconfiança” pelo mercado editorial ocidental.

Há alguns exemplos esparsos de obras de escritoras árabes que foram traduzidas no Brasil nas décadas anteriores. Algumas dessas obras, contudo, foram traduzidas a partir de uma língua intermediária, como o inglês. Isso é relevante no que diz respeito às escritoras árabes porque, em alguns casos, a tradução do árabe para o inglês que foi base para a tradução para o português modificou significativamente o conteúdo da obra, o que foi reproduzido na tradução brasileira.

Esse quadro, entretanto, tem mudado nos últimos anos. Essa mudança se deve em grande parte ao interesse de tradutoras e tradutores, pesquisadoras e pesquisadores, que têm se voltado à literatura árabe de autoria feminina. Deve-se também ao interesse de editoras brasileiras em publicar e divulgar essas obras em traduções do árabe para o português. E a editora Tabla se sobressai nesse sentido com a publicação de diversas escritoras árabes nos últimos anos.

Entre as autoras publicadas, é digna de nota a egípcia Nawal El-Saadawi (1931-2021). A escritora é considerada hoje um dos principais nomes do feminismo nos países árabes, tendo escrito importantes obras nesse campo. Formada em medicina, a escritora deixou uma extensa obra, incluindo vários títulos nos quais discute questões relacionadas à saúde feminina, sexualidade, tradições culturais e religiosas que afetam diretamente a vida das mulheres, entre outros temas. É autora de um grande número de obras em diversos gêneros textuais, como memórias, ensaios, contos e romances.

Um dos romances de Nawal El-Saadawi, A queda do Imã, foi publicado em 2023 pela Tabla em tradução de Safa Jubran. Partindo da ficção, a autora faz uma crítica a questões políticas e religiosas específicas de seu contexto e à forma como as mulheres são subjugadas. Outro romance da autora, Duas mulheres em uma, será publicado em breve em tradução de Beatriz Negreiros Gemignani. Estas duas obras de  Nawal El-Saadawi são fundamentais para conhecer essa importante pensadora do feminismo árabe.

Outro nome notável do feminismo nos países árabes é a marroquina Fatima Mernissi (1940-2015). A escritora, socióloga e ativista é um dos principais nomes do feminismo islâmico e deixou diversas obras sobre temáticas relacionadas às mulheres e ao islã. O livro Sultanas esquecidas: mulheres chefes de Estado no Islã, escrito originalmente em francês, foi traduzido por Marília Scalzo e publicado recentemente pela Tabla.

As escritoras mencionadas fazem parte de uma série de obras árabes de autoria feminina que a Tabla vem publicando nos últimos anos. Essa lista inclui Hoda Barakat (1952-), renomada escritora libanesa residente na França. Da autora, foram publicados pela Tabla os romances Correio noturno, em 2020, e O arador das águas, em 2021, ambos em tradução de Safa Jubran. Outra escritora libanesa, Hanan Al-Shaykh (1945-), que reside atualmente na Inglaterra, foi publicada em 2022. O romance Gente, isso é Londres foi traduzido por Jemima de Souza Alves. Traduzidas e publicadas também em outros países, Hoda Barakat e Hanan Al-Shaykh são duas proeminentes escritoras árabes contemporâneas que agora fazem parte do catálogo da Tabla.

Conhecida principalmente por sua obra poética, outra escritora de destaque é a iraquiana Dunya Mikhail (1965-), considerada uma das principais poetas contemporâneas em árabe. Seu primeiro romance, A tatuagem de pássaro, traduzido por Beatriz Negreiros Gemignani e publicado pela Tabla em 2022, foi finalista do International Prize for Arabic Fiction em 2021. Não podemos esquecer ainda da escritora síria Dima Wannus (1982-) que teve seu romance A família que devorou seus homens, traduzido por Safa Jubran e publicado em 2023.

A autoria feminina também se faz presente na Tablinha, que reúne os títulos da Tabla voltados ao público infantojuvenil. Destaca-se a palestina Sonia Nimer (1955-), considerada uma das principais escritoras de livros infantis do mundo árabe. Da autora, foi publicado o livro Uma história inventada do começo ao fim, em 2021, em tradução de Maria Carolina Gonçalves. Também foram publicados livros da premiada escritora infantojuvenil libanesa Fátima Sharafeddine e de Amal Naser, autora de origem libanesa nascida no México.

Os exemplos mencionados contribuem para apresentar no Brasil obras e escritoras que até então eram praticamente desconhecidas pelo público leitor, que, no geral, tinha contato até recentemente com poucos nomes – sobretudo masculinos – da literatura árabe.

Assim como se dá em outras literaturas, as obras consideradas canônicas na literatura árabe são majoritariamente de autoria masculina. Para a pesquisadora egípcia Hoda Elsadda (2012, p. XVII) (2), os cânones, enquanto produtos de processos culturais que passam por mudanças sociais e políticas, estão sujeitos a reformulações e contestações. Assim, ao publicar essas obras árabes de autoria feminina em tradução para o português, a editora Tabla realiza sua contribuição para se repensar e se transformar o cânone.

Referências:

(1) AMIREH, Amal. Publishing in the West: problems and prospects for Arab women writers. Al Jadid, Cypress, v. 2, n. 10, ago. 1996. Disponível em: https://aljadid.com/content/publishing-west-problems-and-prospects-arab-women-writers

(2) ELSADDA, Hoda. Gender, nation, and the Arabic novel: Egypt, 1892-2008. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2012.

Maria Carolina Gonçalves

Maria Carolina Gonçalves é tradutora e intérprete do par linguístico árabe-português. É doutoranda e mestra pelo Programa Letras Estrangeiras e Tradução (LETRA) da Universidade de São Paulo (USP) e bacharela em Letras com habilitação em Árabe e em Jornalismo, também pela USP. Residiu no Egito entre 2018 e 2019, onde estudou árabe padrão moderno e árabe dialetal egípcio no Instituto Francês do Cairo, e esteve também na Palestina, em 2016, em viagem de estudos. Atualmente, realiza pesquisa voltada à literatura árabe moderna de autoria feminina. Atua também com o ensino de árabe e português.

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