Samarcanda: um livro sobrevivente, leitores escondidos?

Ao ler as aventuras de Omar Khayyam na Pérsia na virada do século XI ao XII, ou nos desdobramentos políticos do Irã contemporâneo pela ótica do estadunidense Benjamin Omar Lesage, somos inseridos em diversas dinâmicas de tempo e espaço pela narrativa de Amin Maalouf no livro Samarcanda. O ponto de partida é o Rubayiat de Khayyam, que na história, nasce como um segredo pessoal. Uma espécie de confidente de seus pensamentos mais livres e menos ortodoxos: reflexões sobre Deus, sobre o amor, sobre o vinho, sobre a liberdade e sobre a própria vida.

Na narrativa, o livro é um ausente que se faz presente. Os acontecimentos se desenrolam e são exibidos ao leitor sem que este tenha qualquer relevância. Mesmo seu autor [Khayyam] muitas vezes não está presente ou diretamente envolvido com os acontecimentos: “Deixe-me com minhas estrelas”, diz ele para sua amada ao ser chamado para auxiliar os conflitos políticos na cidade de Isfahan no auge de sua crise. Mesmo irrelevante em torno da dinâmica de governo, o livro tem seu espaço perpetuado na função de registro. “O Manuscrito de Samarcanda guardaria essa verdade?”, questiona-se o personagem narrador na figura de Lesage.

Uma das belas qualidades da obra de Samarcanda, além de toda a apresentação ilustrativa de acontecimentos e personagens reais pelo romance histórico – típico artifício da escrita de Maalouf –, é a terceira camada de narrativa do livro. Por óbvio, a trama é a interpretação ficcional sobre a existência de um livro secreto que percorre estreitos becos na história do mundo persa muçulmano até chegar às mãos de um homem ocidental, que encerra sua história junto aos destroços do Titanic. No entanto, acompanhamos também a história de um silencioso sobrevivente.

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“A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar e multiplica sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a gente se esquece e esquece), ela não conserva ou conversa mal sua posse, e cada um dos lugares por onde ela passa é repetição do paraíso perdido.”

Esta reflexão de Michael de Certeau, presente no livro A invenção do cotidiano, nos indica a dinâmica da continuidade e durabilidade da escrita e do livro em oposição às leituras como coleção de efêmeros. O livro-personagem, claro, tem transformações de registro em sua matéria: um amigo que escreve junto aos poemas uma biografia sobre a obra e seu autor; outra pessoa que a complementa; e, por fim, artesãos também que ilustram suas páginas. Estes acréscimos da matéria poderiam também não o ser. Khayyam poderia ter escondido em um lugar que somente o desgaste do tempo o acompanharia, como muitos manuscritos que foram encontrados depois de séculos no escuro. Mas a história é sobre um manuscrito que vivenciou tempos e espaços, e que em todas as vezes que foi lido, de diferentes formas, por diferentes leitores, com curiosidades e objetivos diferentes, anunciou por repetição este “paraíso perdido” de que cita o historiador.

Veja nossa aula sobre Samarcanda e as histórias dos livros, com Marina Garcia:

Outra reflexão que poderíamos inferir na lógica do trabalho de Maalouf é o que podemos pensar sobre este sobrevivente. Roger Chartier defende que não existe livro fora do suporte que lhe dá a ler, mas talvez possamos completar a ideia de que a atribuição de sentido de um livro depende também do leitor e dos mecanismos de leitura em que ele se apoia. Assim como não existe uma língua sem falantes, o texto é ausente de sentido sem um leitor que domine seus códigos e compreenda seu funcionamento. O que se põe em questão, portanto, é que este manuscrito que é escrito por Khayyam, em seguida lido por pessoas próximas, depois por descendentes do clã dos assassinos e pela princesa Chirine e o narrador, Benjamin O. Lesage, no século XIX, não formam uma leitura única e homogênea, mesmo que o texto tenha se mantido o mesmo.

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A este respeito Chartier afirma que “a leitura é, por definição, rebelde e vadia”, e a validade de sua sugestão é de que o leitor está sempre a inverter a ordem daquele(s) que produziu(ram) o livro. Ler é um exercício de atribuição de sentidos que varia entre leitores: no tempo, no espaço, no alfabetismo, na oralização ou mentalização de um texto, em sua laicização ou religiosidade, na sua unicidade ou na multiplicidade de leituras, na postura do corpo e na forma da matéria. Mesmo a variação se aplica também num mesmo leitor. Quem nunca ousou revisitar uma leitura que era sua preferida em tempos anteriores e se decepcionou com um conteúdo que não mais lhe causava o mesmo impacto? Ou uma obra que na primeira vez quase nada compreendeu e tempos depois lhe parecia mais simples que outrora.

Se o Manuscrito de Samarcanda, como no romance de Amin Maalouf, tivesse seguido tal trajetória tão heroica, que grande prazer seria poder descobrir todas e as diferentes formas como este paraíso perdido foi revivido.

Conheça mais sobre o livro aqui: Samarcanda, de Amin Maalouf

Marina Garcia Ferreira

Marina Garcia Ferreira é pesquisadora e mestranda em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Graduada na mesma instituição, desenvolve pesquisa sobre o processo de tradução da obra de Ibn Khaldun na França do século XIX. Membro do Laboratório de Estudos Orientais e Asiáticos (LEOA), trabalha nas áreas de História do Livro e da Leitura, História do Oriente Médio, História do Magreb, História da França Contemporânea e Orientalismo.

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