Os efeitos da catástrofe que ocorreu na Palestina a partir de 1948 constituem a memória do povo palestino e também se fazem presentes nas imagens e nos depoimentos de árabes, tanto crianças como adultos que, desde a ocorrência desse conflito, seguem a sua sina. Palestinos sofreram desapropriação e tiveram suas casas destruídas, sendo obrigados a fugir ara um lugar qualquer em busca de refúgio. Um povo que ficou “sem terra” – uma questão que causa grande estranheza porque a justificativa sionista era ocupar a Palestina para os judeus, um “povo sem terra”, segundo Theodor Herzl, o principal articulador do sionismo moderno.. É por essa e outras questões associadas às perdas do povo palestino que sua história não deve ser esquecida; pelo contrário, importa que seja destacada e difundida, especialmente o que representa a nakba.
Pode-se ver como o ponto de partida para a consolidação da identidade dos palestinos pode ser o conflito com os judeus-israelenses. Apesar do pan-arabismo de Gamal Abdel Nasser, que pretendia defender os interesses dos povos árabes, a questão palestina não se tornou essencial para a liderança desses países. Isso mostra que, após 1948 e sem o total apoio da comunidade árabe, os palestinos se viram entregues à sua própria sorte. Não bastava mais ser apenas árabe, os palestinos precisavam de uma identificação com a sua própria terra e sua história – a terra que fora usurpada pelos judeus e a história que se tentou apagar com o avanço do colonialismo praticado pelos sionistas. “A Palestina para os palestinos” tornou-se um lema de resistência desse povo; embora os seus pés não pudessem mais pisar na terra onde nasceram e entrar nas casas que um dia lhes pertenceram, os palestinos ainda guardavam as chaves das suas antigas residências, simbolizando a expectativa do retorno. Por isso, apesar da desapropriação, a memória e a luta desse povo os tornam mais palestinos a cada geração.
A nakba significa que os árabes, por conta da expropriação que viveram, deixaram sua condição de nativos para virarem refugiados, fato que ocorreu inclusive dentro da Palestina e em outros países árabes, como Líbano, Síria e Jordânia. Nesses territórios, não conviveram com a “irmandade” árabe apenas como árabes, mas precisaram se autodeclarar palestinos – isso porque a nakba é palestina, não árabe. Outro problema, como se não bastasse, era que os árabes-palestinos que ficaram em Israel tiveram que passar pelo jugo da “israelificação”, que tinha o objetivo de fazer os palestinos conviverem e trabalharem a partir da lógica de dominação israelense, como apontado pelo filósofo palestino Sari Nusseibeh. Todavia, os palestinos não aceitaram esse jugo e, como consequência, afirmaram a sua identidade palestina, negando o status imposto por Israel.
Promessas de um novo mundo
Mahmoud Mazen M. Izhman, um menino palestino filmado para o documentário Promessas de um novo mundo (2001) na década de 1990, afirmou que a cidade de Jerusalém pertencia aos árabes e não aos judeus. A afirmação de Mahmoud se fundamentou nos preceitos do islã, pois, segundo os muçulmanos, numa viagem noturna, Maomé foi transportado de forma instantânea da Caaba para Jerusalém, e, sendo assim, a cidade, que já era sagrada para judeus e cristãos, a partir do século VII adquiriu status de sacralidade também para os muçulmanos.
Promessas mostra uma celebração organizada pelos assentamentos judaicos que acontece anualmente e festeja a reunificação de Jerusalém. Nessa celebração, a marcha passa pelo setor palestino, a caminho do Muro das Lamentações. O filme contrasta a alegria dos israelenses com o ódio dos palestinos, cuja produção levou o menino Mahmoud para assistir à marcha comemorativa. Na sequência fílmica, em que a passeata israelense acontece ao som de uma música festiva, Mahmoud diz que o seu “coração quer explodir” e que apoia o Hamas e o Hezbollah. A sua fala expressa a indignação que, provavelmente, foi provocada pela constante presença israelense, uma vez que o menino reside em Jerusalém e a cidade ficou sob o controle israelense após a guerra de 1967.
Esse confronto marcou consideravelmente a história do conflito. O que mudou foi que a cidade de Jerusalém foi anexada por Israel à sua zona de controle, além da Cisjordânia, sendo que antes disso estava sob o controle da Jordânia. Os israelenses comemoram desde então a reunificação da cidade, ignorando o fato de que há um importante contingente árabe que reside ali. Esse fatídico acontecimento, portanto, representa uma conquista para os israelenses, porém uma afronta à comunidade árabe palestina, sendo que, a cada ano em que se comemora o fato, o patriotismo do lado judeu se aquece e, do lado palestino, a nakba segue de forma ainda mais intensa.
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As tradições religiosas destacadas no filme e que são vistas na cidade de Jerusalém, sejam elas da cultura árabe ou judaica, aparecem de um lado ou do outro do conflito, muitas vezes apropriadas como instrumento político. Portanto, a constante afronta, as provocações e qualquer espécie de humilhação que os palestinos passam é consequência da nakba. Em outras palavras, é consequência da política israelense, calcada na exclusão e na negação, que afirma constantemente o “não lugar” dos palestinos e que revela o avanço do sionismo; ou seja, é a “política do detalhe”, descrita por Edward Said como uma tentativa de desarabizar o palestino no intuito de apagar os valores e as tradições do povo palestino.
Dentre as histórias experienciadas pelos árabes-palestinos em decorrência da nakba, podem ser destacados os diversos deslocamentos e o “apartheid colonial”, que delineou um modo de vida muito peculiar, especialmente para os palestinos que ficaram em Israel. Eles podem viver em Israel, mas, culturalmente, não pertencem a Israel . As diferenças culturais e as marcas da desigualdade social revelam esse apartheid instaurado na Palestina. Isso também é nakba.
Nakba é um conceito carregado de significados para os palestinos. Sim, nakba é palestina! Enquanto os judeus declaram a sua “independência”, os palestinos afirmam a sua existência. Nakba não é sobre uma derrota, é rememorar as perdas e persistir na luta pelos direitos palestinos. É olhar para trás na expectativa de mudar o futuro da Palestina.
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Claudinei Lodos
Claudinei Lodos é professor e mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).