As feministas teóricas turcas Nilüfer Göle e Deniz Kandiyoti nos ensinam que os movimentos de luta pelos direitos das mulheres na sociedade turca podem ser agrupados em quatro períodos distintos:
- da reforma modernizadora otomana, período Tanzimat 1839-1876, a 1923, sob influência de ideias francesas e estadunidenses;
- de 1923 a 1960, as intervenções nacionalistas e ocidentalistas da República kemalista, o “feminismo de Estado”;
- de 1960 a 1990, a consolidação do feminismo secular kemalista e do feminismo secular crítico ao kemalismo;
- pós-anos 1990, os feminismos seculares sendo questionados pela militância de mulheres islamistas.
A posição da mulher na sociedade “foi considerada pedra angular” desde o início da modernização otomana, segundo Göle eKandiyoti. Escritores dessa época debateram o tema, como por exemplo, Sinasi, que em 1859 editou a primeira crítica ao sistema de casamento arranjado, a peça satírica O casamento do poeta (Evlenmesi); Ahmet Mithat publicou A garota com um diploma (Diplomali Kiz) e Filosofia das mulheres (Felsefe-i Zenan); e Fatma Aliye Hanim, a primeira mulher a se engajar nesse debate, publicou, em 1891, A mulher muçulmana (Nisvan-i Islam) e o jornal semanal A Gazeta Própria das Ladies(Haninlara Mahsus Gazete), cujos princípios, não necessariamente feministas, eram ser boa mãe, boa esposa e boa muçulmana.
Nesse período houve significativas reformas, como, por exemplo, a proibição do sistema de concubinagem e da escravidão de mulheres brancas em 1854 e denegras em 1857 (tornando-se efetivo entre 1880-1890, devido à ratificação dos tratados internacionais). Em 1858, a Lei da Terra estendeu e consolidou os direitos das filhas à herança. Além das fundações de escolas para mulheres como, em 1842, a escola médica (dirigida por europeus); em 1858, a escola secundária; em 1869, a escola vocacional; e, em 1870, o colégio de treinamento para professoras.
Na segunda metade do século XIX, iniciou-se uma expressiva produção de jornais e revistas femininas, influenciadas pela efervescência das ideias europeias e pela reforma modernizadora. Mais de 40 títulos foram lançados, na maioria trazendo temas como o cuidado com as crianças, a família, o trabalho e a saúde. O jornal Mundo das Mulheres (Kadinlar Dünyasi), 1913-1914/1918-1921, foi o primeiro a atuar em campanhas para promover os direitos legais das mulheres. As suas demandas giravam em torno de direitos à educação, ao trabalho, às eleições, à livre escolha de casamento e às mudanças nas vestimentas para os espaços públicos.Entre 1908 e 1919, foram formadas por volta de doze associações, inicialmente de caráter filantrópico, mas depois atuando com reivindicações feministas. Entre essas organizações estavam A Sociedade para a Elevação das Mulheres (Teali-i Nisvan Cemiyeti), ligada aos movimentos sufragistas britânicos, e A Sociedade para a Defesa dos Direitos das Mulheres (Müdafaa-i Hukuk-i Nisvan Cemiyeti), lutando por acesso seguro às profissões remuneradas, assim como . associações que atuaram na “frente de libertação nacional” depois da queda do exército otomano e da ocupação de Istambul.
O “feminismo de Estado” da República kemalista
Kandiyoti e Zehra Arat (pesquisadora turca dos movimentos de mulheres em seu país) contestam a divulgada ideia de que a ocidentalização, imposta por Kemal Atatürk, foi a única responsável pelo seu “feminismo de Estado”. Para as autoras, as mudanças formais nos estatutos e nas políticas com relação às mulheres tiveram inspiração também nas ideias nacionalistas e feministas de Ziya Gökalp (1876-1924).
Gökalp era um dos mais expressivos líderes do nacionalista turco, tendência ideológica predominante no período de transição do Império Otomano para a República. A sua concepção sugeria que os valores culturais genuinamente turcos incluem “o domínio comunal da terra, a democracia na família parental, como oposta à autocracia da família patriarcal, a igualdade de homens e mulheres e o casamento monogâmico”.
Para ele, os turcos eram essencialmente democráticos e feministas, sendo necessário traçar planos políticos de Estado para a recuperação dessas características, perdidas com as influências do Islã e das culturas persa e bizantina. Gökalp disse que “um retorno à autenticidade cultural automaticamente restauraria para as mulheres sua perda de status e dignidade”.
Ziya Gökalp rejeitou a modernização ocidentalizante, pois considerava que o moderno era inerente à cultura turca. A sua teoria de “civilização turca e nacionalismo” se tornou uma das mais influentes na ideologia kemalista. A despeito dessa influência de Gökalp, os kemalistas definiram como meta nacional a transformação da sociedade turca segundo o modelo ocidental, sendo a emancipação das mulheres fundamental para atingir esse objetivo.
Contudo, essa orientação política não significou um rompimento total com as ideias de Gökalp, o que pode ser observado nas influências dos escritos de Afet Inan (filha adotiva de Atatürk) nas medidas do Estado e nos movimentos de mulheres kemalistas. Em seu livro A emancipação da mulher turca, Inan sugere, diferentemente de outras autoras, que a transição para o Islã levou ao declínio no status das mulheres turcas, embora ela ponha mais peso negativo nas influências dos costumes árabes e persas .
As duas visões, a nacionalista turca e a ocidentalista, trazem implicitamente a incompatibilidade da emancipação da mulher com o Islã, ou seja, a ideia de que o Islã seria um dos principais responsáveis pela opressão da mulher nessa sociedade. Alguns autores parecem concordar com essa visão, como Kandiyoti, cuja opinião é de que as ações mais decisivas da República kemalista com relação à emancipação das mulheres foram a eliminação do Islã da esfera institucional legislativa e a inclusão de uma nova noção de cidadania, por meio da implementação de medidas governamentais “feministas”. Essa avaliação vai ser invertida a partir dos anos 1990, com a presença do feminismo islâmico na Turquia, pois para este movimento feminista há a total compatibilidade entre Islã e a emancipação da mulher.
Esse “feminismo de Estado” aplicado por Atatürk logo no início da República se direcionou para a estrutura formal da família: aboliu a poligamia; rejeitou o casamento de crianças; reconheceu que as mulheres têm direitos iguais (nas áreas, por exemplo, dos testemunhos nas cortes, na herança e na manutenção da propriedade); garantiu para as mulheres o direito de escolha para o casamento e de iniciarem um divórcio, mantendo seus direitos depois de consumado.
Nessa primeira fase da República houve significativo aumento da presença das mulheres em espaços públicos, devido às medidas nos âmbitos: a) educacionais: grandes investimentos, a ampliação no número de escolas, o livre acesso e a obrigatoriedade de ambos os sexos ao nível básico; e, b) políticos: o sufrágio, o direito a concorrer nas eleições (municipais em 1930 e nacional em 1934) e o grande salto da participação no Parlamento (em 1937, nas eleições gerais, dezoitodeputadas foram eleitas, correspondendo a 4,5% da Assembleia Nacional).
Contudo, a República kemalista, com relação à emancipação da mulher, falhou em aspectos decisivos: primeiro, com relação aos direitos em lei, que até os anos 1980 não alcançaram a grande maioria da população, devido à falta de efetivas políticas públicas e às desigualdades socioeconômicas . Segundo, com relação à autonomia política, em que foram tomadas medidas proibitivas para limitar a ação dos movimentos independentes, como, por exemplo, o indeferimento da autorização para o funcionamento do Partido do Povo das Mulheres, em junho de 1923, quando lhes foi permitido fundar apenas associações, e a proibição na Constituição de 1981 de os partidos formarem ramificações paralelas e/ou organizações de mulheres.
Foi fundada, então, em 1924, a Federação das Mulheres Turcas, autoeliminada em 1935, um dia depois do principal evento feminista do período: o Congresso da Federação Internacional das Mulheres. Nesse congresso, que celebrava a conquista do sufrágio das mulheres na Turquia, a participação internacional foi massiva, contando com a presença de delegadas estadunidenses, europeias, asiáticas e de países do Oriente Médio (por exemplo, a feminista egípcia Huda Sha’rawi). Porém, a postura do Congresso de defender o desarmamento mundial parece ter sido a responsável pelo fechamento da Federação (embora a alegação pela autoeliminação tenha sido a de que a mulher turca havia alcançado igualdade plena).
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Junto às reformas kemalistas se formou o movimento feminista turco, conhecido como feminismo secular kemalista. Segundo Ilkkaracan (1997), este se caracterizou por um elitismo ideológico, composto por intelectuais, artistas, esposas e filhas de governantes kemalistas que, por se considerarem com mais autoridade para falar de práticas feministas, distanciaram-se da grande massa popular de mulheres.
Embora com grande potencial de luta, as suas ações estavam ligadas às políticas do Estado e ao status quo e usavam o discurso oficial de que as mulheres turcas haviam recebido emancipação antes mesmo de muitos países europeus. O que favoreceu certa “cegueira” ao que acontecia na realidade social, projetos de lei que alcançavam apenas as mulheres mais urbanizadas e da elite, baixos índices de desenvolvimento nas condições sociais, como, por exemplo, em 1955, quando a porcentagem de mulheres com trabalhos pagos era apenas de 3,8%; em 1975; 51,8% delas eram analfabetas, embora a educação primária fosse obrigatória desde a revolução republicana; no Parlamento, em 1993, o índice era de apenas 2,3% (menor do que em 1935); e, no Código Civil turco permaneceu a subordinação da mulher à família.
Até os anos 1980, havia o apoio incondicional às medidas de emancipação do governo de Kemal Atatürk e o consenso em relação à afirmação de que foram “as reformas kemalistas que emanciparam as mulheres e que esse ‘fato’ não poderia ser contestado”, segundo Yesim Arat. No entanto, essas reformas foram criticadas pela nova geração de feministas, nos anos 1990, pois se alegava que, embora tivessem trazido radicais mudanças favoráveis às mulheres, essas medidas continham repressão da sexualidade, fé em profissionalismo (ou educação) e sobreposição do comunitário sobre o individual e reafirmavam o status quo das relações privadas. Essas feministas consideravam que o Estado kemalista endossava e legitimava as instituições patriarcais predominantes na família, na mídia e na educação.
Moderno é um termo adequado para qualificar o status legal das mulheres na Turquia, nos anos pós-2010 e anterior ao governo de Recept Tayyp Erdogan (islamista que vem impondo retrocessos nas questões democráticas da Turquia), se comparado a outros países de maioria muçulmana. Um país com a aparência cosmopolita nas grandes cidades, como Istambul e Ancara, mas bastante provinciano na maioria das outras cidades e que tem na sua atual legislação um elevado grau de especialização, numa perspectiva de gênero, decorrente das reformas de 2001, no Código Civil, e de 2004, no Código Penal.
Não obstante, a despeito das conquistas das lutas feministas, a legislação turca não deve ser pensada como perfeita, pois no que tange ao cotidiano ela não chega a todas as mulheres ao mesmo tempo, devido a problemas socioeconômicos e às estruturas advindas das tradições étnicas, religiosas e culturais. A Turquia oriental tem um caráter multiétnico, onde convivem curdos, turcos e comunidades de origem do Azerbaijão, além dos árabes e dos cristãos. A Turquia ocidental se divide principalmente em duas tendências religiosas, a maior parte da população segue a orientação sunita e um grupo minoritário segue a orientação xiita, conforme menciona Ilkkaracan. Um ilustrativo de que as leis não sejam válidas igualmente para todas as comunidades presentes na Turquia pode ser a vigência do Código de 1926, que prevê a proibição da poligamia e a garantia de direitos iguais às mulheres ao divórcio, mas, todavia, na Turquia oriental, a poligamia é ainda uma prática usual e muitas mulheres não conseguem o divórcio.
Nos anos 1980 e 1990, na Turquia, bem como no Egito, no Paquistão, no Irã, na Tunísia e nas diásporas muçulmanas nos EUA e na Europa, os movimentos de mulheres destes países vivenciaram confrontos ideológicos e ativismos mútuos entre islamistas (fundamentalistas) e feministas seculares, proporcionando um novo tipo de ativismo feminista, complexo e paradoxal, que junta a ação feminista ao paradigma islâmico surgindo o autointitulado feminismo islâmico, transnacional, desterritorializado e político-teológico. Atualmente é visível a colaboração entre os feminismos seculares muçulmanos (inclusive o turco) e o feminismo islâmico no sentido de aumentarem o escopo dos movimentos feministas e de se inserirem em todos os espaços dos países com maioria muçulmana, inclusive nas comunidades mais fechadas e distantes.
Referências
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