Abaixo, leia o texto Uma carta de Gaza, do escritor palestino Ghassan Kanafani (1936 – 1972), escrito sete anos após a Nakba de 1948. A escrita atemporal de Kanafani faz uma denúncia que segue atual, uma denúncia de um projeto colonial sionista que, ao longo de décadas, visa ao apagamento físico e simbólico do povo palestino.
O texto foi retirado da coletânea A terra das laranjas tristes (أرض البرتقال الحزين), de Ghassan Kanafani.
Tradução do árabe ao português por Felipe Benjamin.
Caro Mustafa,
Acabo de receber a carta em que você me conta que já preparou todo o necessário para que eu possa encontrá-lo em Sacramento. Também recebi a notícia de que fui aceito no departamento de engenharia civil da Universidade da Califórnia. Só tenho o que agradecer, por tudo, meu amigo. No entanto, vai parecer um pouco estranho para você a notícia que tenho para lhe dar. Mustafa, acredite. Eu não sinto um pingo de hesitação neste momento. Na verdade, estou muito certo de que nunca enxerguei as coisas com tanta clareza como agora. Meu amigo, eu mudei de opinião. Não vou atrás de você lá onde há “verde, mar e belos rostos”, como me escreveu. Não. Eu vou é permanecer aqui e jamais vou partir.
Mustafa, isso é algo que me incomoda de verdade, que nossas vidas não vão continuar a seguir o mesmo curso. Eu chego a ouvir você me lembrando do nosso pacto de permanecermos juntos, de como gritávamos: “vamos ficar ricos!”; porém, meu amigo, não tenho nenhum truque na manga. Isso mesmo, eu ainda me lembro com exatidão do dia em que estava parado no saguão do aeroporto do Cairo, apertando a sua mão enquanto olhava fixamente aquele motor insano. Tudo naquele momento girava junto com o motor ensurdecedor, e você parado na minha frente com seu rosto redondo e silencioso.
Seu rosto não se diferenciava em nada daquele rosto de quem cresceu no bairro de Chujaiya, em Gaza, exceto pelas leves marcas de expressão. Crescemos juntos, entendendo perfeitamente um ao outro, e fizemos um pacto de permanecer juntos até o fim, porém…
– Faltam quinze minutos para a decolagem, não fique aí olhando para o nada. Me escute, ano que vem você vai para o Kuwait. Lá você vai poupar o que puder do seu salário para arrancar as raízes de Gaza e se transplantar para a Califórnia. Começamos juntos e assim temos que continuar…
Naquele momento, acompanhava seus lábios que se moviam sem parar. Esse era seu jeito de falar. Sem vírgula, nem ponto. Mas eu tinha um sentimento obscuro de que você não estava completamente feliz em ir embora. Você não podia enumerar três motivos para essa fuga. Já eu, também sofria com esse rompimento. Contudo o sentimento mais evidente era: Por que não deixamos Gaza e nos mandamos? Por quê? Apesar disso, sua situação estava começando a melhorar. O Ministério da Educação do Kuwait contratou você e não me contratou. Em meio à miséria em que eu vivia, de vez em quando você me enviava pequenas quantias, mas queria que eu as considerasse empréstimos, para eu não me sentir diminuído. Você conhecia bem a minha situação familiar, além de saber que meu baixo salário para trabalhar nas escolas da Unrwa não bastava para sustentar minha mãe, a viúva do meu irmão e seus quatro filhos.
– Me escute bem. Escreva para mim todo dia, toda hora, todo minuto. Já está na hora do avião decolar. Me despeço de você aqui. Não me diga “adeus” e sim “até logo!”
Seus lábios frios estalaram na minha bochecha. Você deu as costas para mim, virando em direção ao avião e quando voltou a me olhar, pude ver suas lágrimas.
Mais tarde o Ministério da Educação do Kuwait me contratou. Não é necessário que eu repita como eram os detalhes da minha vida por lá. Eu sempre escrevia para contar tudo a você. Minha vida por lá era gosmenta e oca feito uma pequena ostra: perdida numa pesada solidão, um conflito lento com um futuro tão opaco quanto o começo da noite, uma rotina putrefata, um combate regurgitado com o tempo. Tudo era pegajoso e quente. Minha vida inteira era escorregadia, sempre ansiando pelo mês seguinte!
Na metade daquele ano, daquele mesmo ano, os judeus bombardearam o distrito central de Sabha e atacaram Gaza, a nossa Gaza, com bombas e lança chamas. Esse acontecimento podia mudar um pouco a minha rotina, mas não era nada que desviasse demais a minha atenção. Eu deixaria essa Gaza para trás e partiria para a Califórnia onde eu viveria por mim, pelo meu ser que tanto sofreu. Eu odiava Gaza e quem estava lá. Tudo naquela terra decepada me recordava um homem doente tentando pintar, sem sucesso, quadros utilizando unicamente a cor cinza. Sim, eu já enviava à minha mãe e à viúva de meu irmão quantias ínfimas para sobreviver. Mas eu também iria me libertar desse último nó, lá naquela Califórnia verde, longe do cheiro de derrota que entupiu minhas narinas por sete anos. A compaixão que me atava aos filhos do meu irmão, à mãe deles e à minha própria mãe nunca seria o suficiente para justificar minha tragédia, esse mergulho de cabeça no chão. Isso não podia me arrastar mais para baixo do que já tinha feito. Eu precisava ir embora!
Mustafa, você conhece esse sentimento, porque já o vivenciou para valer: o que era essa coisa oculta que nos prendia a Gaza, limitando nosso ânimo de partir? Por que não destrinchávamos a questão de um modo a conferir-lhe um sentido evidente? Por que não deixávamos para trás essa derrota com suas feridas e passávamos a uma vida mais colorida, que nos desse maior consolação. O porquê não sabíamos exatamente.
Quando saí de férias em julho e juntei tudo o que tinha, aspirando a essa doce partida e às pequenas coisas que conferem um sentido leve e cheio de cor à vida, foi aí que encontrei Gaza exatamente como costumava ser: fechada em si mesma, como o interior de uma concha em espiral, um caracol corroído arremessado pelas ondas na areia grudenta da praia próximo ao abatedouro. Essa Gaza é mais estreita que a alma de alguém que é acometido por um pesadelo aterrorizante durante o sono: com suas ruas apertadas que exalam um cheiro particular, cheiro de derrota e miséria, e suas casas com sacadas proeminentes. Isso é Gaza. Mas quais são as causas ocultas que arrastam o ser humano para a sua família, para a sua casa, para as suas memórias; assim como a água conduz os bodes perdidos na montanha? Não sei. Tudo que sei é que fui até minha mãe, até nossa casa, naquela manhã. Lá a esposa do meu falecido irmão veio me encontrar assim que entrei e, chorando, me pediu que eu atendesse o pedido de sua filha, Nadia, que se encontrava internada no Hospital de Gaza, e que fosse visitá-la naquela mesma tarde. Você conhece Nadia, a minha bela sobrinha de treze anos?
Naquela tarde, comprei algumas maçãs, e me dirigi ao hospital para visitar Nadia. Sabia que havia algo ali que minha mãe e minha cunhada estavam escondendo de mim, algo que não podiam dizer com seus próprios lábios, algo estranho que eu não podia visualizar. Eu estava habituado a amar Nadia, bem como a amar toda aquela geração que foi criada na derrota e no deslocamento, uma geração que acreditava que ter uma vida feliz era uma espécie de desvio social.
O que aconteceu naquele momento? Eu não sei. Entrei no quarto branco na mais completa calma. Toda criança quando fica doente adquire uma certa santidade, mas e quando é vítima de ferimentos cruéis e dolorosos? Nadia se encontrava sentada na cama com as costas apoiadas em um travesseiro branco sobre o qual seus cabelos estavam espalhados como a pele de um animal raro. Havia nos seus grandes olhos um silêncio profundo, junto de uma lágrima repousando para todo o sempre bem no fundo de sua pupila negra. Seu rosto estava calado e sereno, mas eloquente como a face de um profeta martirizado. Nadia ainda era uma menina, porém parecia mais que uma menina, muito mais; além de mais velha, muito mais velha.
– Nadia!
Não sei se fui eu mesmo quem disse isso ou alguém atrás de mim. Mesmo assim ela ergueu os olhos na minha direção e senti como se me fizessem derreter feito um torrão de açúcar que caiu dentro de uma xícara de chá quente. Junto do sorriso tímido ouvi sua voz:
– Tio, você veio do Kuwait!
Sua voz embargou na garganta. Ergueu-se com o apoio das mãos e esticou seu pescoço até mim. Dei um leve tapinha em suas costas e me sentei perto dela:
– Nadia! Trouxe presentes do Kuwait para você, um monte de presentes. Estou aguardando você sair da cama recuperada, para você vir à minha casa e eu entregar tudo para você. Comprei as calças vermelhas que você me pediu nas cartas. Sim, eu comprei.
Tratava-se apenas de uma mentira gerada por aquela situação tensa. Mas eu sentia como se estivesse falando a verdade pela primeira vez. Já Nadia tremia como se levassse um choque, então abaixou a cabeça com uma calma fora do normal. Senti que suas lágrimas molhavam as costas da minha mão.
– Diga para mim Nadia. Você não quer as calças vermelhas?
Ela levantou o olhar para mim e esboçou que iria dizer algo. Mas logo se deteve e cerrou os dentes. Ouvi sua voz mais uma vez vindo de dentro:
– Tio!
Esticou a mão e levantou o cobertor branco com seus dedinhos, revelando a perna amputada na parte superior da coxa. Meu amigo… Nunca vou esquecer a perna amputada de Nadia. Nem vou esquecer a tristeza que moldou seu rosto, nem as lágrimas que se infiltraram nos seus doces traços, para todo o sempre. Naquele dia, saí do hospital direto para as ruas de Gaza, apertava na mão duas libras que havia trazido para Nadia com um sentimento de desprezo gritante. O sol forte enchia as ruas com cor de sangue. Mustafa, Gaza estava completamente renovada. Eu e você nunca a vimos assim. As pedras empilhadas na entrada do bairro de Chujaiya onde vivíamos tinham um significado, e parecia que tinham sido postas ali por nenhuma outra razão senão explicá-lo. Essa mesma Gaza em que, na companhia de sua gente boa, vivemos sete anos de Nakba. Era algo novo. Para mim, parecia apenas o começo. Não sei por que sentia que era só o começo. Eu imaginava que a rua principal pela qual eu caminhava, retornando para a casa, era apenas o começo de um longo caminho… um caminho bem longo até Safad. Tudo nessa Gaza pulsava de tristeza pela perna amputada de Nadia, uma tristeza que não se limitava ao choro – era esse o problema. Não era só isso. Tratava-se de algo semelhante a querer recuperar a perna amputada!
Saí pelas ruas de Gaza, ruas cobertas pela luz do sol a pino. Disseram para mim: Nadia perdeu a perna quando se lançou sobre os irmãos mais novos para protegê-los das bombas e das chamas que lançaram suas garras sobre a casa. Nadia podia ter se salvado, fugido, ou ainda resguardado a própria perna. Mas não o fez.
E por quê?
Não, meu amigo, não vou para Sacramento, e não tenho nenhum arrependimento por isso. Não, também não vou terminar aquilo que começamos juntos na infância. Esse sentimento obscuro que você sentiu ao partir de Gaza… esse sentimento insignificante deve ressurgir gigante no seu interior. Ele tem que crescer e você tem que buscá-lo para encontrar a si mesmo, aqui entre os hediondos escombros da derrota.
Não vou até você, mas retorne você para nós! Retorne para aprender com a perna amputada de Nadia, amputada na parte superior da coxa. Retorne para aprender o que é a vida e quanto vale a existência.
Retorne meu amigo… Estamos todos à sua espera.
Kuwait, 1956.