Qual o espaço que o livro e a leitura têm nos territórios palestinos ocupados? À primeira vista pode parecer uma questão secundária, diante da violação dos direitos humanos que as comunidades palestinas sofrem há décadas. No entanto, a promoção da leitura está diretamente relacionada ao direito à educação, à identidade, à liberdade de expressão e pelo acesso à informação.

São exatamente essas as bandeiras do Tamer Institute for Community Education, organização educacional não governamental sem fins lucrativos criada em 1989 como uma resposta às necessidades urgentes da comunidade palestina, atuando na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

Além disso, a organização possui uma Unidade Editorial cujo foco é fornecer livros de alta qualidade para crianças e jovens. Mais de 350 livros foram publicados, estimulando a imaginação e a criatividade entre as crianças e tratando de temas como identidade, diversidade, igualdade de oportunidades e direitos da criança. Em 2009, o Tamer Institute recebeu o Astrid Lindgren Memorial Award, prêmio concedido pelo governo sueco a iniciativas que incentivam a leitura, a escrita e a expressão artística de crianças e jovens para se comunicarem e superarem barreiras.

A Tabla lançou Uma história inventada do começo ao fim, de Sonia Nimer, com ilustrações de Raouf Cray; traduzido por Maria Carolina Gonçalves.

Renad Qubbaj, diretora geral do Tamer Institute for Community Education, que promove a leitura entre os palestinos, conversou com Ana Cartaxo, cofundadora da editora Tabla, no mês de janeiro, sobre como as crianças escrevem suas histórias, como tratar de temas difíceis para esse público e a importância do livro entre os palestinos.

Leia alguns dos principais tópicos da conversa!

Sobre as parcerias com organizações internacionais, as crianças e comunidades:

“O Tamer é um instituto reconhecido pelo seu trabalho com literatura infantil, tanto no mundo árabe como no cenário internacional. Como resultado disso, temos parcerias com organizações que compartilham dos mesmos valores. Um dos principais valores é: as histórias podem ser um meio e uma ferramenta de libertação e emancipação para crianças e jovens. Todo programa que criamos e todas as ferramentas que usamos devem ter um efeito nas pessoas e nos indivíduos, principalmente nas crianças e nos jovens adultos e, claro, nos profissionais que trabalham com estas crianças, sejam eles bibliotecários, pais, professores ou artistas. 

No Tamer Institute temos uma unidade editorial que produz livros para crianças e jovens, e esses livros são muitas vezes publicados por escritores profissionais e artistas muito bem estabelecidos, mas outra parte deles é publicada pelas próprias crianças e pelos próprios jovens. Então, nossas publicações são também um espaço para as crianças testarem a si mesmas e compartilharem suas experiências sobre a vida, participando de todo esse processo de publicação no instituto.”

A primeira experiência de escrita de crianças palestinas:

“Dentro da nossa organização, nós publicamos anualmente um livro que se chama Meu primeiro livro. Trata-se de uma série que publicamos desde 1996. Todos os anos lançamos em um livro algumas histórias, pelo menos sete histórias, de sete crianças da Cisjordânia e de Gaza. As histórias são ilustradas também por crianças. Elas enviam seus textos e um comitê de leitura seleciona alguns, dentre centenas de textos, que são publicados no Meu primeiro livro. É uma leitura sempre muito interessante porque as crianças sentem tudo o que acontece ao seu redor de uma maneira muito própria, seja alguma espécie de tragédia ou um ano difícil, a nossa luta pela libertação… tudo se reflete nos textos. Sempre que tem um ataque à Gaza pela ocupação israelense, por exemplo, isso aparece nos textos das crianças. Os temas são muito variados e tocam em todas as questões imagináveis. Em grande parte, falam sobre as preocupações partilhadas pela comunidade, sobre seu sofrimento, falam da dificuldade de chegar à escola, da travessia dos postos de controle… mas também escrevem sobre seus animais, seus amores e suas vidas. Às vezes, eles tocam até em temas que a nossa cultura conservadora não tocaria. Por isso é muito importante compartilhar a voz das crianças. Meu primeiro livro é um espaço onde as  crianças podem falar para a nossa comunidade e para o mundo sobre o que sentem, o que testemunham, um espaço onde elas podem compartilhar seu entendimento sobre a justiça, a humanidade e assim por diante.

No concurso para Meu primeiro livro, nós não oferecemos oficinas de escrita. Essa é a primeira experiência deles com a escrita, então é um texto deles mesmo, sem a influência dos adultos, da escola e dos pais. Mas paralelamente a isso temos outras atividades ligadas à escrita criativa. O concurso está aberto para as crianças de todos os lugares, e elas podem enviar seus textos para qualquer biblioteca comunitária. Aceitamos publicação de jovens entre 8 e 15 anos. Quem tem mais de 15 anos tem outro espaço para publicar. Temos também uma revista que vem encartada num jornal palestino, e esta revista (ou suplemento) é totalmente dirigida e editada por jovens de 15 a 24 anos. Eles não precisam fazer parte da equipe do Tamer para participar, podem estar em qualquer lugar do mundo. Se forem palestinos, podem enviar seus textos e um comitê editorial dos próprios jovens recebe, revisa e depois seleciona poemas ou textos poéticos, ilustrações, filmes, artes expressivas diferentes do que você veria em uma revista.”

O aprendizado em um ambiente seguro

“As histórias são muito importantes para as crianças. É lá que elas encontram um ambiente para aprender e para se sentirem seguras. Mesmo se a história trata de um assunto duro, quando ela é bem contada, as crianças aprendem sobre a dureza do mundo, mas a partir de um lugar seguro. É muito importante que a criança aprenda não apenas sobre as coisas boas, mas também sobre as tragédias, sobre os lugares obscuros, que estão conectados com a morte, ou com a guerra, ou com a ocupação. 

Um escritor irlandês famoso, não me lembro seu nome, disse:

‘Temas difíceis, duros, também podem ser apresentados para as crianças, mas é preciso um bom escritor para apresentá-los.'” 

A importância do livro na Palestina 

“Vou lhe contar um fato sobre a vida na Palestina e sobre a relação dos palestinos com os livros. Nos anos 70, 80 e até 90, na Cisjordânia, nós não tínhamos acesso aos livros por causa da ocupação israelense. Por exemplo, se os soldados israelenses encontrassem em sua casa livros de Ghassan Kanafani, você poderia ser interrogado e teria que explicar porque e como conseguiu seus livros. E qualquer coisa poderia acontecer em consequência disso. 

Os livros não eram acessíveis para os Palestinos, então eles são uma coisa preciosa para nós, de uma forma diferente de qualquer outra parte do mundo. Mesmo hoje em dia, se um livro é publicado no Líbano ou na Síria ou no Iraque, ele não vai chegar até nós, ainda existem muitas restrições porque não há acordo de paz entre Israel e esses países árabes. Os livros árabes de diferentes partes do mundo árabe, para nós, estão acessíveis há menos de 20 anos. Em Gaza, durante a invasão em 2009, não era permitido ter papel, então os papéis eram contrabandeados pelos túneis do Egito para Gaza. 

Nós, palestinos, temos uma história com livros completamente diferente. Atualmente, é claro, a tecnologia está aproximando as pessoas, não apenas fisicamente, e as coisas estão diferentes, mas enviar livros para Gaza não é um processo simples. As dificuldades e os desafios são muito grandes nessa área.”

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