À memória de Josef Smeha

Não somos uma comunidade; nós que ficamos no exterior. Não nos parecemos nem compartilhamos laços comuns. Raramente nos encontramos, e quando o fazemos em algumas ocasiões, rapidamente nos separamos e nos dispersamos, acenando com a mesma mão com que vamos nos telefonar em seguida. Chegamos a isso depois que superamos o estágio das falsas repreensões. Nós nos separamos e nos dispersamos muito rapidamente, aliviados por ter evitado um momento pesado que perturbaria nossa vida aqui, que flui como um rio calmo. Isso fica ainda mais pesado quando se trata de uma “ocasião libanesa”, como um filme ou uma palestra sobre Beirute, ou algo a que comparecemos por apoio, comiseração ou simplesmente para nos sentirmos menos culpados. Como a maioria dos imigrantes, costumávamos ficar nas entradas e nos corredores e depois nos reunir em um café nas proximidades para conversar, perguntar sobre a situação na terra natal e, muitas vezes, nos envolvermos em discussões acaloradas.

Não somos uma comunidade, e não gostamos de nossa semelhança nem do que nos faz lembrar dessa semelhança. Preferimos nos diluirmos em qualquer ambiente social em que nos encontremos. Não raro, nos vemos acompanhando colegas franceses para essas reuniões libanesas, conversando com eles sobre assuntos neutros, como nos acostumamos a fazer com nossos filhos, deixando-os livres para escolherem seus lugares, sem nossa interferência ou insistência em estreitarem os laços com uma pátria que nem nós mesmos sabemos que laços nos ligam a ela. Já nos esquivamos do pequeno esforço para explicar a diferença entre a tabule libanesa e a salada de cuscuz, chamada aqui de tabouli. Essa foi nossa maneira de evitar ter que abordar as questões mais complexas que dizem respeito à nossa pátria… deixamos de nos esforçar… por tédio.

Nós nos separamos e nos dispersamos com leveza; voltamos para nossas casas, depois de assistir a um filme ou uma palestra sobre Beirute, apenas com o que nos convém. Não penduramos mais em nossas paredes aquelas imagens icônicas e aqueles cartazes da Sahet Alburj ou do mar da Rauche, que se vendem muito lá e que trazíamos conosco da nossa última viagem, ou ainda que eram trazidos a nós por alguém voltando de sua visita ao Líbano. Nós os guardamos, em armários e gavetas, para o caso de precisarmos deles um dia por uma razão que ainda não está clara para nós. Nada em nossas casas aqui aponta para nosso pertencimento ao nosso país de origem ou ao nosso apego a ele. É como se o desprendimento e o curso regular do tempo fosse tudo o que desejamos em um lugar onde o céu acinzentado está sempre combinando conosco.

Não somos uma comunidade nem de perto nem de longe. E aqueles que eram nossos amigos em casa são precisamente aqueles que agora nos causam a maior repulsa. Tentamos fugir deles como se fossem parceiros em um crime não resolvido, que preferimos esquecer. Ou como quem encontra com um amante que era muito querido um dia, mas cuja presença (ou ausência) não tem lugar no nosso presente. Quanto aos outros, vindos do presente, nos sentimos tão distantes deles que se torna absurdo até mesmo considerar preencher a lacuna que nos separa. Tanto dentro de nossas casas quanto fora delas, passamos a gostar de falar — e escutar mais — a língua estrangeira e tentamos evitar as entonações que podem nos levar de volta às melodias daquele lugar que deixamos para trás, sem querer encontrar com ninguém vindo dele. Não perguntamos mais nada aos recém-chegados, e zombamos, em nosso íntimo, dos que, felizes, nos oferecem baqlawa ou kichk, produtos com os quais encheram suas malas e vieram arrastando-as pelo aeroportos, mesmo sabendo que podemos encontrá-los por aqui, frescos… e mesmo assim não os compramos.

Não somos uma comunidade, e não temos velhos amigos que prezamos ou novos em quem confiamos. E os poucos com quem ainda nos importamos e para quem nossos corações ainda palpitam quando reconhecemos suas figuras de longe e ficamos tomados pela vergonha quando vemos a idade roendo seus corpos frágeis — apenas aqueles encarnam nossa incapacidade de falar, como se tivéssemos sido jogados em um palco bem iluminado e forçados a nos confrontar e expressar uma paixão ilícita e pecaminosa. Como se, evitando-os, secretamente estivéssemos lhes poupando de um fardo insuportável ou de uma preocupação que viria se somar à sua. Reconhecendo neles nossa própria fraqueza e fragilidade, tentamos escapar e evitar esse encontro tanto com eles como também com nós mesmos. Neles, também vemos nossos pais que estão lá, muito longe… com quem elevamos a voz desnecessariamente quando falamos por telefone, para que possamos esvaziar as palavras de seus significados doídos, querendo poupá-los de uma crueldade que se somaria à crueldade dos milhares de quilômetros que nos separam, e para que esqueçamos — enquanto gritamos pelo telefone — que eles morrerão em breve, entre um telefonema e outro. Morrerão, com certeza… e nós ainda estamos aqui.

Não somos uma comunidade, mas há um fio fino que se infiltra entre nós e nos aperta um pouco mais, quando percebemos que um de nós está prestes a voltar para a pátria. Temos vergonha de reconhecer que uma parte do que sentimos é traição, evitando os olhos uns dos outros. Não reconhecemos que parte do que sentimos é uma terrível solidão, uma morte seguida de outra morte, neste país onde as pessoas sequer conseguem pronunciar nossos nomes e onde teremos sempre que soletrar as palavras várias vezes, e levantaremos a voz, gritando ao telefone, para não dizer nada àquele que voltou.

Falamos sobre os benefícios de voltar e dizemos que talvez seja para melhor. E detalhamos sobre o que é preciso para levar uma vida decente. Fingimos nos importar, mas não nos importamos. Depois acreditamos em nossa indiferença e nos apegamos a ela. A indiferença, não o esquecimento, é que nos faz sentir menos a traição e o abandono. Eles também nos fazem perceber que aqueles que voltam se juntam lá a quem ficou e preferiu o esquecimento, enquanto nós aqui vamos nos tornando mais pálidos e diminuídos, à medida que continuamos a nutrir ressentimento e rancores intratáveis.

Não somos uma comunidade, mas agora percebemos que aqueles que nunca deixaram Beirute, assim como aqueles que estão voltando a ela, são amigos do esquecimento e do perdão…  uma bênção que nos falta. Eles assistem às estações passando e às ruas mudando de características; assistem às mulheres envelhecendo, às crianças crescendo, e aos pais falecendo…  eles leem os jornais, sabem todos os nomes dos novos políticos, encontram-se em cafés e nas calçadas, amaldiçoam a situação em que estão…  e se esquecem. Nós, no entanto, avançamos mais longe na ausência e na memória, a ponto de termos nos tornado seus hóspedes indesejáveis: hóspedes da amargura…

Nos encontramos à noite para nos despedirmos daqueles que estão voltando para a terra natal, porém sem tocar muito no assunto. Ficamos apreensivos com o fato de que aquele que fala pouco e se mostra discreto será o próximo a partir. Ficamos cismados com quem declara seu apoio à decisão de voltar, lançando mão da objetividade e neutralidade, fazendo com que duvidemos de nós mesmos, pois reconhecemos em suas palavras uma decisão iminente de voltar, que ignoramos ou fingimos não nos importar com ela. Às vezes, até exageramos ao dizer que todos podemos voltar um dia… sabendo muito bem que não voltaremos.

Separamo-nos e voltamos para nossas casas, e à medida que adentramos na noite, percebemos que estamos ficando em menor número, reunidos ou separados, e nos damos conta que estamos ficando pequenos dentro de nós, e mais vulneráveis à brisa fria e à língua do país em que estamos vivendo, e sentimos cada vez menos falta da animosidade. Percebemos que nos tornamos mais obedientes às leis de trânsito daqui e às burocráticas e exaustivas regulamentações das autorizações de residência. Percebemos que nossas vozes ficam mais baixas quando reclamamos do rigor dos departamentos de imigração, e mais compreensíveis com nossos filhos que estão ocupados com seus novos amigos, esquecendo-se de nós, zombando das canções lamuriosas que escutamos às vezes quando estamos sozinhos em casa, caçoando dos cantores que eles acham que morreram há séculos. Enfim, quando um conhecido parte é que percebemos o quanto odiamos aquele país que nos odiou, mas que o amigo está decidido a amá-lo novamente.

Nos separamos e dispersamos à noite, gesticulando que entraremos em contato em breve. Olhamos para o céu, fechamo-nos dentro de nossos casacos pesados, apesar do outono estar ainda longe. Olhamos de novo para o céu, por ser o espaço onde o sol brilha, por segurar nossos aviões com suas cordas compassivas. Sorrimos, zombando, e seguimos apreciando as paredes de nossos poços, livres de todas as cordas, enquanto uma leve afeição nos puxa para a frente.

Um autor inglês chamado Hugo de Saint-Victor (um aristocrata e execrado comandante militar que uma vez fugiu do campo de batalha com todo o seu batalhão) disse, certa feita:

“Aquele que dá ao seu país de nascimento todo o seu amor é apenas um jovem iludido e inexperiente. Quanto àquele que tem afeto a todas as terras como se fossem a sua, ele é um homem forte e maduro. Mas apenas um homem venerável e sábio é capaz de perceber o mundo inteiro como uma terra esquecida. Assim, enquanto a juventude inexperiente dá todo seu amor a um lugar, e o homem maduro divide seu amor entre muitos, apenas o sábio, mestre de si mesmo, reconhece que este amor está expirando e desaparecendo.”

E o Senhor disse a Ló: “Vou virá-la de cabeça para baixo, e farei chover torrentes de fogo e enxofre. Afaste-se, e não olhe para trás, pois aquele que olhar será transformado em uma coluna de sal”.

Exercícios ingleses para a sabedoria e o autocontrole.

Todo esse enxofre…  todo esse sal escorrendo, correndo… 

É o pedágio mecânico do absurdo.

Tradução do árabe: Safa Jubran e Felipe Benjamin Francisco

*O texto árabe foi publicado originalmente no periódico Asymptote:

https://www.asymptotejournal.com/nonfiction/the-return-of-the-nonprodigal-sons-hoda-barakat/arabic/

Hoda Barakat

Hoda Barakat é uma das vozes mais poderosas da literatura contemporânea do Oriente Médio. Na Tabla, é a autora de "O arador das águas" e de "Correio noturno", ambos traduzidos do árabe para o português por Safa Jubran.

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