Bartók é o menos inovador e o mais original dos grandes músicos modernos”, é o que teria dito um amigo de Caetano Veloso numa conversa sobre tradição e ruptura. Essa frase parece nos ajudar a compreender o que o poeta Adonis tem a dizer sobre os versos de um dos expoentes da poesia pré-islâmica no ensaio “Chânfara: a poética da recusa”  [ الشنفرة : شعرية الرفض ] (1). O Poema dos Árabes constitui uma das importantes peças do cânone literário árabe, representativo da qasida, forma clássica do poema em monorrima, composto por dois hemistíquios.

É possível ler uma excelente apresentação do poeta no texto “Considerações sobre o (anti-)herói de Chânfara”, por Roberta dos Santos, no blog da editora Tabla. No Brasil, Poema dos Árabes foi publicado pela Tabla em 2020, com tradução direta do árabe por Michel Sleiman, que também verteu o poeta Adonis ao português.  

O Poema dos Árabes, a princípio tão distante em sua linguagem, aos poucos mostra que as questões de Chânfara não deixam de ser, também, as nossas. Como toda obra que se torna cânone, o poema possui uma agudeza que atravessa os séculos, vivo, e em diálogo com a contemporaneidade, afinal “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”(2), para retomar a definição de Ítalo Calvino.

Poética da recusa

O poema inicia-se numa clara viagem, aparentemente sem volta: Chânfara deixa sua tribo e expõe o que lhe parece serem as fraquezas e as corrupções do sistema social tribal em que se via inserido. O resultado disso, nos próximos versos, parece ser uma auto-construção que busca diferenciar Chânfara de sua tribo, atribuindo a ela traços que a tornam detestável aos seus olhos e também aos nossos. A busca de seu auto-exílio torna-se, portanto, pela integração à vida conjunta com os animais que seriam estes sim, honrados e verdadeiros em sua natureza, imaculados das podridões da sociedade tribal. Adonis nomeia isso de “poética da recusa”.

Adonis ressalta que essa recusa contém em si um desejo, um projeto de busca: desiludido com sua tribo, Chânfara deseja um outro grupo, e seu futuro está, portanto, incorporado à época daqueles outros, do grupo dos animais.

Entre a saída da tribo de origem e da tribo que deseja se inserir, há um tempo e um espaço que representa o sentimento de contradição e falta de identidade. A partir daí, uma atmosfera de catástrofe invade o poema, apesar do orgulho ostensivo com o qual o poeta se move. Chânfara afirma não temer o tempo ou a fome, assim, pode dominar o espaço em que se encontra: “o lugar não é mais senhor, também o tempo não é mais senhor. O senhor é Chânfara: ele próprio é a lei, e ele se basta”(3).

Dobro as vísceras sobre a fome como se dobra

a lã crespa no novelo – se estica e se enrola.

De manhã, para comer saio à cata como o esquálido

animal zanza, a tez cinza, no horizonte, pálido.

Zarpa, sobre a fome dobrado, como o vento

desce, disparado, a trilha dos desfiladeiros

A fome e as misérias físicas que o deserto impele à todas as criaturas que ali vivem são superadas, em tom de vanglória, por Chânfara. Segundo Adonis, o exílio do mundo e de si mesmo representa, sob essa perspectiva, uma manifestação de esperança, cuja essência consiste na preferência pelo mundo animal ao mundo da tribo e das leis. A natureza torna-se lei.

A escolha de Chânfara pelo o que é profano e ilícito, através do olhar da tribo, não pode ser, senão, a única escolha possível pela liberdade. Mais que isso, é também uma forma de reintegração do ser, afinal, a fraqueza da tribo está em mascarar, com suas artificialidades, a animalidade e os desejos presentes nos animais, em nós. 

Por isso, eles são fracos, e Chânfara, que se refugia com os animais e os vê como iguais e honrados, forte. Extirpar o ser humano de sua animalidade é violá-lo, diminuí-lo e por fim, não compreendê-lo. Parte da vanglória de Chânfara recai aí: ele não é desses homens “enrabichados”, com kohl nos olhos, desses que perderam sua ligação com o mundo natural. 

Ele se coloca como líder dos animais quando estes imitam suas ações:

lanço-me, lançam-se; deixam-se cair pesadas

e de mim levanta um vencedor de andar pensado”

Assim como na magnífica cena em que ele se encontra rodeado por gazelas que o vêem (e ele também se vê) como um bode de curvos cornos. 

o ir-e-vir, ao meu redor, das camurças douradas,

como virgens a portar vestes de longa cauda,

a correr no crepúsculo ao meu redor, eu, bode

de patas brancas, descendo, recurvos, os cornos

Um árabe “romântico”

Adonis menciona ainda um certo “romantismo” presente no Poema dos Árabes, “um romantismo antes mesmo desse nome existir”. Além da busca pela liberdade, a vida, aqui, é sagrada e sem pecados, como se ele nos dissesse que as raízes do ser humano não estão na tribo, mas no próprio ser humano, em sua natureza e liberdade. 

O crítico chama a atenção para que não confundamos o romantismo de Chânfara com o romantismo alemão, que vem de uma herança do iluminismo exaltando a alma alemã, sonhando com uma estrutura sagrada. Em Chânfara, o romantismo se constitui pela exaltação do ser humano fora de qualquer estrutura, uma exaltação à liberdade que honra o caos, à loucura e à bela destruição das bases do sistema tribal. 

O romantismo do poeta pré-islâmico aponta uma saída para fora do sistema, através de um comportamento assentado em algo que é visto por esse mesmo sistema como “louco”, pois, ao se diferenciar, o indivíduo cria a si próprio, continuamente insano e subvertido. 

A modernidade latente na tradição

A relação entre tradição e modernidade é uma questão a que Adonis dedica parte considerável de sua produção crítica. A falta de dialética com que comumente se olha a tradição parece limitar e esmagar o indivíduo em seu próprio tempo, e a leitura de textos clássicos árabes parece antes ser feita de uma maneira rememorativa e congelada do que crítica e reflexiva. O processo contínuo e dialético da construção de uma herança e um legado de uma tradição é, assim, perdido. 

Esse fenômeno é ilustrado pelo professor e filósofo marroquino, Mohammed Abed al-Jabri (4) como uma fusão entre sujeito e objeto que gera uma incapacidade de elaborar percepções críticas sobre a tradição na qual se está inserido. Essa falta de visão histórica se torna visível principalmente quando pensamos na relação do indivíduo com a língua árabe, afinal, essa língua que permaneceu quase inalterada por mais de catorze séculos, é, ao mesmo tempo, a matéria do texto antigo e o instrumento utilizado para lê-lo: uma relação de enclausuramento entre ação e reflexão.

Retomando a anedota sobre Bartók, o que Adonis parece querer nos mostrar é que a leitura comum deste texto não parece perceber a vivacidade revoltosa que ele carrega, vítima de uma perspectiva congelada em si mesma cuja esterilidade reduz o indivíduo a uma repetição automática. Assim, não é possível enxergar que estes mesmos elementos da tradição se tornaram modelos criativos literários precisamente por seu caráter de ruptura. A construção da tradição não pode ser, senão, dialética. Ler Chânfara em sua modernidade latente é enxergá-lo em sua integridade.

Notas:

(1) Este texto surgiu a partir das reflexões suscitadas pela leitura do ensaio “Chânfara: a poética da recusa”  [ الشنفرة : شعرية الرفض ] — título provisório—,  em Discurso dos primeiros (Dar Al-Adab, 1989) [ كلام البدايات ]. O livro reúne ensaios críticos do poeta Adonis  sobre a tradição literária árabe antiga, o que inclui a poesia pré-islâmica. Dentre as obras analisadas está Poema dos Árabes, de Chânfara. O ensaio se encontra em processo de tradução por Laura Porto, sob supervisão de Michel Sleiman.   

(2) CALVINO, I. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11.

(3) ADONIS, 1989, p. 89.

(4) AL-JABRI, M. A. Introdução à crítica da razão árabe. Tradução de R. L. Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

Laura Porto é aluna do último ano de bacharelado em Letras (Português/Árabe) na Universidade de São Paulo, onde vem estudando poesia árabe — clássica e moderna — com o professor Michel Sleiman. Atualmente, participa do programa de Estudos Palestinos e Árabes (PAS) da Universidade de Birzeit.

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