Em certo momento, a narradora de A família que devorou seus homens (Tabla, 2023), da escritora síria Dima Wannus, compra uma câmera a fim de registrar as recordações familiares da mãe, com quem vive.
A princípio, a geografia é imprecisa: ora as lembranças se passam em Damasco, ora em Beirute, Paris ou Londres. Aos poucos, os contornos, embora instáveis, ficam mais concretos e vão delineando as figuras femininas daquela família: além da mãe e da narradora, a tia, as duas primas e a prima-sobrinha. Os fios da memória chegam até a Armênia e a Turquia, passam por amores perdidos e se esfacelam no ‘não lugar’ de uma guerra.
O embaralhamento inicial de pessoas, situações e lugares me parece acertado: como se assistíssemos ao estilhaçamento de uma família, que, na ruptura, lança cada parte a um canto distinto e impregna cada uma delas com algo das demais. A diáspora e a morte não se assemelham no destrançar de laços e vivências?
A Câmera como documento de memória familiar
A câmera comprada pela narradora, na verdade, é menos uma salvaguarda das lembranças maternas e mais uma mediadora, uma companhia no presente. Afinal, a mãe é atriz, está acostumada a atuar “diante de”; por isso, é preciso tirá-la do palco e colocá-la numa cena desprovida de plateia. Para nós, leitorxs, a informação da câmera oferece uma pista da estrutura do texto: a exemplo dos filmes documentais em primeira pessoa, a memória subjetiva funciona como lente, a perspectiva que passeia pelas situações captando aspectos do cotidiano e momentos-chave da vida das personagens, por meio de imagens de arquivo (as recordações como matéria de reinvenção) e intervenções diretas. E é na montagem que o filme-livro surge como tal: a costura de cenas tão distantes no tempo e no espaço como se fossem um continuum, um álbum de família coeso feito de pequenos flashes em movimento apesar das ausências.
Leia a orelha de A família que devorou seus homens, de Dima Wannus
A família devorou seus homens e, depois, viu partir suas mulheres. Não há linearidade temporal ou espacial no texto de Wannus, porque a “montagem” sugere que essa família não pertence mais ao presente ou a lugares concretos; é agora da mesma matéria dos sonhos, das saudades ou das nostalgias e só existe graças à “câmera” (ao artifício, à ficção e à imaginação).
O texto, embora nostálgico, tem momentos de bom humor e leveza. Wannus cria e fixa imagens repletas de sensorialidade: as palavras têm texturas e aromas. Ainda na metáfora cinematográfica, eu diria que a escrita de Wannus trabalha pegada a seus personagens, alternando primeiro plano, plano detalhe, plano e contraplano.
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Maria Fernanda Vomero – @_mafeentrelivros
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