Toda guerra deixa terra arrasada e despojos para além da imaginação comum e afeta sobremaneira as pessoas e comunidades em seus territórios. Há um consenso que assim o é. Contudo, o que isso significa, ao se olhar mais atento e aproximado? A tatuagem de pássaro, belíssimo e duro romance da iraniana Dunya Mikhail (com tradução de Beatriz Gemignani), é uma boa resposta a esta questão.

“Os membros da organização já haviam tomado todos os pertences das prisioneiras, incluindo as alianças de ouro. Mas a aliança de Helin não era um anel, e sim uma tatuagem de pássaro. Com os olhos fixos em seus dedos, ouvi um deles chamar em voz alta: ’27, número 27!’. No início Helin não sabia que aquele era seu número. Quando foi chamada outra vez, imaginou que o homem deve ter ficado bravo, pois ela saiu de seu lugar na fila e correu em direção a Amina. Não podia acreditar que sua melhor amiga de infância, Amina, estava logo ali do outro lado da sala. Amina, por sua vez, também ficou de boca aberta, incrédula. Mas o abraço choroso durou só alguns segundos, interrompido pelo anúncio da voz estridente: ‘27 vendido!’.”

Helin é iazidi. Os iazidis (ou yazidis), segundo a jornalista Sara de Melo Rocha, são etnicamente “curdos e misturam elementos de várias tradições como o Zoroastrismo, antiga religião persa, do Islão e do Cristianismo. Acreditam na reencarnação e não seguem nenhum livro sagrado. São monoteístas e pré-cristãos, defendendo que este Deus supremo é representado por sete espíritos”. Por essa razão, eles têm sido, ao longo de séculos, perseguidos por cristãos e mulçumanos, sofrendo ataques e massacres, cujos registros, vão do século XVII ao recente ano de 2014.

O contexto sócio-político do romance é o da dominação do Iraque pelo Daesh, como é chamado o autointitulado Estado Islâmico no Iraque, que tomou parte do país, autoproclamando um califado e promovendo um genocídio iazidi. As Nações Unidas estimam, entre mortos e refugiados, um número de 400 mil pessoas.

Como política de salvação das almas, mulheres — o que inclui crianças — foram vendidas para homens leais ao califado para servirem como “esposas” e, desse modo, terem a salvação de suas almas infiéis. Mulheres iazidi foram tomadas de seus lares e famílias, desligadas de profundos e sólidos laços com esposos, pais, mães, filhas e filhos, de suas crenças e tradições, para serem violentadas noite após noite, dia após dia. A cena de abertura do romance é da venda de Helin, reduzida a um número, sendo vendida mais uma vez.

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“Mas este filme de terror a que estou assistindo já crescida me assusta, pai. Ele é a realidade que vivo. Se a minha vida fosse um filme, eu ficaria aterrorizada com os acontecimentos. Pai, você se lembra de como ficou bravo quando a professora me deu uma palmada um dia e eu chorei? Você me proibiu de ir à escola até eu garantir que ‘não foi uma palmada forte, já não estou mais sentindo, pai’. ’Não aceito que ninguém coloque a mão em você, quem quer que seja’. Se você soubesse, pai, quantos já bateram em mim em sua ausência, quantos me estupraram.”

Dunya não poupa o leitor, há uma sequência angustiante de páginas de dar nó na garganta. A crueldade mesclada à esperança, ora raquítica, ora amplificada, de escapar do martírio e reencontrar Elias, seu esposo, reencontrar os filhos, reencontrar a filha, que foi obrigada a deixar para trás ainda bebê. O início do romance é passado nesse cativeiro, dentro de uma casa desocupada, assombrada pelas fotos e vestígios de uma família executada, desfeita ou foragida, como tantas outras. 

A partir do quarto capítulo é que o horizonte se abre e começamos a descobrir algo mais do que o nome e a angústia dessa mulher. É um mergulho na delicadeza e na leveza de um mundo ainda intocado pela guerra e pela violência, um mundo tão mais colorido e singelo, integrando rusticidade, harmonia e comunitarismo num pequeno vilarejo entre as montanhas, ao norte, onde Helin vivia com seus familiares.

É a memória de uma vida lenta, em que as coisas eram feitas pela paciência, integrada à natureza e extraindo dela e da fraternidade entre vizinhos, o necessário para se viver. Essa simplicidade vai revelando as crenças e o modo iazidi de viver. Diante dos laços estabelecidos naquele lugar, entendemos o tamanho da personagem Helin. Ali, ninguém é ilha. Todos estão conectados de um modo em que parte de si é também parte do outro, e cada uma dessas pequenas partes só encontra sentido a partir da perspectiva do todo.

Elias, por sua vez, é um homem da cidade, e, por isso, uma ilha. A conexão com o filho de seu relacionamento com a ex-esposa falecida e com suas irmãs são os únicos laços que o sustentam, e, ainda assim, falam mais de dever do que de sentimento. É o encontro com Helin, e com seu mundo, que o faz recuperar o sentido do seu próprio mundo. Esse encontro tão único e potente assegura ao romance uma incrível dose de beleza e delicadeza que quase nos faz esquecer o sofrimento e a escuridão pela qual a protagonista atravessa nos três primeiros capítulos.

Assim, apresentados a esse mundo bucólico e ancestral, vemos a sua destruição na ponta das barbas e das metralhadoras do Daesh. Uma fé imposta, que violenta o corpo das mulheres até se esvair quaisquer resquícios de esperança, alegria e vida, que escraviza meninos recrutados para a guerra e mata infiéis. O desmoronamento daquele mundo  volta a nos causar angústia, agora que compreendemos suas dimensões e, sobretudo, a sua beleza. Novamente, o nó na garganta, a tristeza repentina tomando a alma.

Experienciamos um carrossel de emoções conflitantes, um sentimento de impotência diante dos acontecimentos que se desenrolam, quando compreendemos o quantitativo dos anos, o prolongamento das torturas, estupros e mortes, e a persistência do amor envolto naquela tatuagem de pássaro.

A escrita franca, direta e honesta de Dunya Mikhail surpreende pela capacidade de imprimir verdade e empatia a partir dos acontecimentos, e não através de artifícios e malabarismos linguísticos que tentam dar tons poéticos ou requintados à tragédia. Dunya é fiel ao sofrimento iazidi, lançando luz, em um registro humanizado e sensível, a um genocídio tão próximo e tão ignorado por nós. Helin é tantas em uma só…

Leiam. Só leiam.

Postado originalmente no site LiteraturaBR!

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