“Enquanto todos dormem um sono profundo (seu pai e sua mãe, as galinhas no galinheiro, as vacas e as cabras no curral), Yunis passa a noite imerso num mundo de aromas deliciosos: cheiro de leite fresco fervido na hora, baunilha, chocolate em pó, morangos frescos, damascos, cremes…”
É assim que somos apresentados ao protagonista de Yunis, da libanesa Amal Naser, livro infantil lançado pela Tabla, com ilustrações de Anita Barghigiani e tradução de Maria Carolina Gonçalves. Para além de abordar a questão da inserção social de crianças com Síndrome de Down na figura de Yunis, o livro traz para o centro da história o modo como as relações de afeto podem ser mediadas pelo ato de cozinhar.
Yunis tem um segredo: de noite, ele faz doces que são entregues anonimamente na frente da casa das outras crianças da vila onde mora. Tem um quê de A festa de Babette, famoso filme dinarmaquês de 1987 que, por sua vez, é uma adaptação cinematográfica do livro homônimo de Karen Blixen.
“Yunis cantarola enquanto prepara um cardápio apetitoso. No cardápio, bolo de milho com leite condensado, panquecas com mel, bolinhos doces recheados com queijo e goiabada… Bolo de laranja fofinho com uma deliciosa cobertura de creme branco…. Yunis aprendeu a fazer até mesmo receitas da França! Docinhos de cores e sabores diversos e um maravilhoso bolo de chocolate com recheio cremoso!”, continua o narrador do livro.
É nesse contexto culinário que Yunis vai, ao final, ser amado pela comunidade da qual faz parte. Interessante perceber que na descrição dos doces não há nenhum dos doces tradicionais árabes, compostos por ingredientes como nozes, tâmaras, amêndoas e pistache. As ilustrações do livro são dominadas por bolos, pudins e até macarrons, comidas ligadas a uma tradição mais europeia.
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Aqui adentramos o âmbito das utopias. Segundo o historiador Hilário Franco Júnior, em Em busca do Paraíso Perdido: as utopias medievais (Ateliê/Mnema, 2021), uma das características do “Paraíso edênico” para o homem medieval é a representação da fartura. Em uma Europa vivendo a ameaça constante de guerras e intempéries da natureza estragarem as colheitas, a fome era uma realidade que podia bater à porta a qualquer instante. Diante disso, não é de se estranhar que contos de fada, histórias folclóricas e imagens do Paraíso fossem assoladas pela ideia de fartura alimentar.
Pensando que o Líbano ainda é um país que vive assombrado pelo fantasma da guerra civil que durou de 1975 a 1990 (cujo fim nunca chegou realmente) e que Amal Naser, apesar de ter nascido no México, é de origem libanesa e vive no país, é possível ver a comunidade de Yunis como uma espécie de utopia libanesa. Como durante a guerra a fome e a escassez de alimentos foi uma das suas trágicas consequências, a imagem de uma criança com dotes de confeitaria alimentando todo um vilarejo com seus doces deliciosos é claramente utópica.
E é uma utopia que não se encontra no passado, mas volta no presente diante da crise econômica pela qual o Líbano vem enfrentando. Estima-se que metade da população libanesa está em risco de insegurança alimentar por não ter acesso a alimentos básicos (essa porcentagem aumenta entre refugiados e grupos mais vulneráveis). O World Food Programme (WFP) avaliou que o preço dos alimentos aumentou 628% em apenas dois anos. Aliado ao fato de a crise econômica libanesa ter levado três quartos da população à situação de pobreza, de a lira libanesa ter se desvalorizado em 90%, de a pandemia de Covid-19 ter dificultado a importação de alimentos (uma vez que o Líbano importa 85% do que consome) e de o preço dos combustíveis ter aumentado, a fome faz parte hoje do dia a dia dos libaneses.
A fome é, aliás, um tema que voltou a dominar a vida do brasileiro diante das altas taxas de desemprego, da inflação e de outros problemas trazidos pela pandemia de Covid-19, para além das dificuldades econômicas que o país já estava passando. O Brasil voltou ao Mapa da Fome em 2018 e, em 2020, registrou 55,2% da população tendo de conviver com a insegurança alimentar, de acordo com pesquisa da Rede Penssan.
Esse cenário distópico faz com que as utopias ganhem uma dimensão de maior importância, pois é sonhando com mundos melhores possíveis que se busca concretizá-los na realidade.
Paula Carvalho
Paula Carvalho é jornalista, doutora em História pela UFF e autora do livro “Direito à Vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt”