No contexto da literatura árabe clássica (séculos 1-6 H./7-13 d.C.), podemos entender o “gênero” das maravilhas (ᶜajā’ib) como um desdobramento de temas dos textos geográficos e cosmografias. Em linhas gerais, esses temas correspondiam a dois tipos de conteúdo: informações dispersas sobre monumentos e fenômenos naturais; e as chamadas maravilhas da criação de Deus (ᶜajā’ib alḫalq) – encontramos aqui, por exemplo, eventos meteorológicos incomuns, fenômenos físicos como as propriedades magnéticas dos metais, observações zoológicas que misturam animais verídicos a criaturas folclóricas, lendas, mitos, e etc.

A ascensão das maravilhas se intensificou por volta dos séculos 4-5 H./10-11 d.C., quando se multiplicaram as narrativas que favoreciam a dimensão deslumbrante em detrimento das pretensões informativas. Nas obras desse período, a precisão do conteúdo e das localizações geográficas dá espaço a um território imaginário, mas preenchido por contos orientais. Sendo assim, o livro Aḫbār Aṣṣīn wa Alhind (Relatos da China e da Índia) está entre os textos que ilustram uma espécie de proto maravilhoso, bem como os primeiros momentos da formação desse tipo de obra – mais especificamente, no contexto das literaturas naval e comercial.

O Relatos da China e da Índia, na verdade, é uma obra formada por dois livros. O primeiro data de 237 H./851 d.C., e é comumente atribuído a um certo Sulaymān Attājir – literalmente, “Sulaymān, o mercador”. Já o segundo não possui data específica, então o remetemos à primeira metade do século 4 H./10 d.C., e seu compilador se apresenta como Abū Zayd Alḥasan Assīrāfī. Uma vez que este nos diz que foi encarregado de averiguar o primeiro livro, e que compilou seu próprio anexo, a forma atual da obra conhecida como Relatos da China e da Índia é um produto do desempenho dessa função de Abū Zayd.

Os dois livros se distinguem de maneiras significativas – não tanto em tema, mas muito em forma. O primeiro é mais objetivo e seco, mas nem por isso deixa de nos fascinar com a raridade de seu conteúdo e os olhares atentos de seus informantes; o segundo, por sua vez, foi nítida e deliberadamente submetido à elaboração literária. Enquanto o propósito do livro I é transmitir um conhecimento útil, Abū Zayd parece estar mais interessado em agradar a audiência. A seguir, falaremos da interação dessas duas partes e de alguns desdobramentos dessa interação, para, com isso, conhecermos um pouco a respeito de uma das facetas mais diretamente literárias desse livro.

No Relatos da China e da Índia, o potencial para o maravilhoso advém, sobretudo, de duas causas: a ambientação distante do conteúdo que se expõe, e a escassez de informações factuais a respeito de tais lugares. Em síntese, ele está na recepção do caráter prático das atividades dos informantes; relatos acerca de realidades inusitadas – porém verídicas, ainda que pouco conhecidas –, são tomados como histórias irreais por seu teor desconhecido.

Com frequência, entre as pessoas que não se envolviam diretamente nessas atividades, e não tinham contato constante com outros povos e regiões distantes do mundo, os relatos sobre terras longínquas circulavam relacionados às histórias de maravilhas. O motivo disso parece ser um teor comum aos dois tipos de narrativa, como formas semelhantes de deslumbramento, e estranhamento, perante esse desconhecido. Não parece ter sido relevante para a audiência da época se esse efeito se produzia a partir de um contato com outra realidade – tão remota a ponto de parecer irreal – ou com uma narrativa “ficcional”. Esse estranhamento, por sua vez, foi submetido a um processo crescente de extrapolação narrativa, no qual foram enfatizados os significantes mais característicos dos textos de relatos informativos. Alguns exemplos disso são: a figura do relator, as localidades geográficas de interesse comercial, os povos de aparências e costumes tão estranhos quanto fascinantes, as mercadorias de alto valor, os fenômenos naturais, os animais que parecem monstros ou invenções completas, e assim por diante. As histórias resultantes ganharam uma forma em que o conteúdo empírico é intercalado e mesclado ao fantasioso. Contudo, o maravilhoso nem sempre advém do “ficcional”; por vezes, ele está naquilo que é simplesmente desconhecido, incompreendido, mas que, tomado em seu próprio contexto, pode não ser uma expressão do excepcional. Dois exemplos contundentes disso: no relato de Sulaymān, constam as referências mais antigas, afora a literatura chinesa, ao chá e ao papel higiênico. Casos como esses demonstram como deslumbramentos de épocas pregressas podem já ter se dado com o que, hoje, nos parecem banalidades.

O teor documental perde o protagonismo no anexo de Abū Zayd. Ele não se restringe a transmitir informações objetivas, mas sim se apoia nas histórias que escutou de viajantes e mercadores dos mares da China para desenvolver suas próprias histórias. Das duas metades do Relatos da China e da Índia, é nessa que o potencial para o maravilhoso começa a surtir efeitos – ou talvez seja mais apropriado dizer: nela está uma primeira etapa da sujeição desse conteúdo informativo a um processo de fabulação. Assīrāfī reconheceu o teor prático do primeiro livro, mas, em seu próprio texto, não expressa a mesma autoridade ou grau de minúcia, por exemplo, quanto às informações sobre rotas ou navegação – e, de fato, esse não parece ser seu foco. Ao invés disso, esse teor é extraído de relatos como o de Sulaymān e reformulado como um pretexto para entreter; o caráter prático, ainda que possa ser preservado em alguma medida, ganha um valor secundário. A maioria das histórias que se seguem são recursos para ilustrar as informações e os relatos, mas já não se mantêm constrangidas pela finalidade de instruir; a narração dos eventos se estende, os diálogos ganham destaque, e enfoca-se o caráter divertido.

Em suma, e no que diz respeito a essa sua dimensão literária, a característica mais singular desse conjunto conhecido como Relatos da China e da Índia é atar duas pontas num trajeto de fabulação. A primeira está numa origem documental, em que relatos informativos são compilados e circulam, sobretudo, entre pessoas interessadas pela dimensão prática de seu conteúdo, como mercadores, navegantes, cortesãos que pudessem consumir tais produtos, entre outros. A segunda ponta, por sua vez, conduz esse conteúdo à esfera “ficcional”, possibilitando assim que a audiência se expandisse.

Contudo, o estágio inicial desse processo em que se encontra o Relatos não alçou um reconhecimento equiparável a alguns de seus mais célebres desdobramentos. Talvez, isso tenha ocorrido porque as prioridades dos livros I e II logo se dataram, à medida que correspondiam, cada vez mais, a circunstâncias passadas e desafios superados. Quando o caráter informativo de registros como o livro I foi aprimorado ou perdido, sua maior atratividade passou a ser o aspecto “exótico”, que, por sua vez, tornou-se a prioridade de pessoas que só tinham contato indireto com esse conteúdo, ou seja, apenas através de relatos. O teor estranho à audiência sedimentou a associação entre os relatos sobre terras distantes e as histórias de maravilhas, de modo que, posteriormente, traços dos relatos de viajantes se tornaram dispositivos narrativos de verossimilhança em enredos fantásticos.

Saindo do Relatos da China e da Índia, vemos o passo seguinte sendo dado em direção ao maravilhoso simultaneamente à época de Abū Zayd. Compiladores começaram a compor antologias a partir de histórias extraídas de ambas as categorias, isto é, de fontes documentais – como obras geográficas e compilações de relatos como o livro I –, e de coletâneas de narrativas elaboradas a partir dessas fontes, como o livro II. Tais obras se caracterizam por aumentar ainda mais a distância entre o valor informativo e a elaboração literária, pois o critério geral de seleção para com as fontes mencionadas passou a ser o teor inusitado. A obra exemplar dessa tendência é o Kitāb ᶜAjā’ib Alhind (Livro das maravilhas da Índia), escrita pelo marinheiro persa Buzurg Ibn Šahriyār Arrām-Hormuzī (m. cerca de 345 H./956 d.C.). Suas histórias mantêm-se apoiadas em depoimentos, mas conteúdos considerados mais atraentes para a audiência são priorizados e expandidos.

Desde o início, o livro de Buzurg Ibn Šahriyār destaca a relação entre o tipo de narrativa que seu livro contém, o oriente como espaço do maravilhoso por excelência, e, com maior ênfase, a China e a Índia: “Deus – abençoado e altivo seja Seu nome, e grandioso seja o louvor a Ele – criou as maravilhas em dez partes, colocou nove delas no oriente e uma nos outros três cantos da terra, que são o ocidente, o norte e o sul. E então, colocou oito partes na China e na Índia, e uma parte no restante do oriente.” O livro também contém elementos maravilhosos proeminentes, frutos tanto da intervenção dos contadores de histórias, como da distorção ao longo de transmissões mais antigas. Aqui, a fabulação já se explicita em figuras famosas, como o pássaro roca (ruḫ), a tartaruga-ilha, e o dragão ou serpente marinha (tinnīn), mescladas a tópicas geográficas como as inalcançáveis ilhas Wāq Wāq.

Na etapa seguinte, observamos o surgimento de um personagem que se tornou símbolo dessa fabulação com base nas três etapas anteriores: Sindabād, o marujo, popularmente conhecido como Simbá. Não há consenso se suas histórias teriam se originado ao mesmo tempo que as Maravilhas de Buzurg Ibn Šahriyār, ou a partir delas, ou de outras obras que continham elementos semelhantes. Ainda assim, é seguro afirmar que este conjunto é nosso ponto de contato mais evidente com a história do livro Relatos da China e da Índia – mais especificamente, porque Sindabād é o ápice do processo de fabulação que estamos descrevendo até aqui.

Conhecemos esse personagem como um dos nomes principais dentro do Livro das mil e uma noites. Entretanto, suas histórias circulavam como uma série independente muito antes de constarem no cardápio à disposição de Šahrazād. Diferentes relatos e narrativas maravilhosas eram reunidas sob a figura desse protagonista, o que fez com que ele se tornasse uma moldura, assim como a célebre narradora. As versões mais antigas das histórias de Sindabād possuem indícios de apropriações diretas de textos geográficos, como o Livro das Rotas e Reinos, de ᶜUbaydullāh Ibn Ḫurdāḏbeh (m. cerca de 300 H./912 d.C.), e do livro I do Relatos da China e da Índia. Além disso, sua série logo se consagrou como o habitat natural de figuras emblemáticas da literatura maravilhosa dos mercadores e marinheiros, como o peixe-ilha, o pássaro roca, o vale de serpentes engolidoras de elefantes, e o gigante comedor de gente – que já foi associado até ao ciclope Polifemo –, além das aventuras que sempre vão em busca de riquezas raras, como ouro, pedras preciosas, pérolas, âmbar cinza, almíscar, sândalo, cânfora, e etc.

As histórias de Sindabād estão repletas de traços dos relatos de viajantes das atividades naval e comercial. O próprio nome do marujo contém um marcador geográfico que, por sua vez, pode ser tomado como um marcador temporal. Etimologicamente, Sindabād seria “o senhor do Sind”, no qual Sind é a forma arabizada do nome sânscrito do rio Indo. Assim, o nome remete o personagem à região litorânea do atual Paquistão – um território conquistado pelo império islâmico no início do século 2 H./8 d.C., e que tornou-se posto avançado das empreitadas do califado ao oriente.

Narrativamente, as viagens de Sindabād seguem uma lógica episódica, e são contadas mediante ciclos de partida e retorno de seu protagonista. Este, por sua vez, também é o narrador de suas jornadas; quando já em idade avançada, ele se apresenta como Sindabād Albaḥrī, ou “Sindabād, o marítimo”, e relata suas histórias a um jovem carregador, cujo nome também é Sindabād. A preservação do testemunho pessoal no narrador é um indício do parentesco com o contexto dos relatos, bem como a representação da audiência num trabalhador do mercado, sem conhecimento direto da realidade descrita pelo navegante. Como narrador, Sindabād decide contar suas histórias e exige que os demais o ouçam, desviando assim da regra dos narradores d’As mil e uma noites, que são convocados a narrar mediante a ameaça de morte.

Curiosamente, vale notar aqui o teor econômico dessa moldura: ao passar em frente a uma mansão em festa, Sindabād, o carregador, declama versos lamentando as injustiças da desigualdade, de um mundo em que poucos têm tanto e tantos têm tão pouco. Nisso, um servo vem de dentro da mansão buscá-lo, e o coloca frente ao dono da casa. Esse diz que ouviu o que o carregador declamara e pede para que ele repita. Depois, apresenta-se como Sindabād, herdeiro de uma classe de comerciantes abastados, mas diz que gastou toda a sua fortuna, então decidiu refazê-la através do comércio. Por fim, ele passa a narrar aos presentes as histórias de suas aventuras pelos sete mares.

Em meio às modalidades de narrativas concorrentes, que abordavam um mesmo teor comercial e marítimo, o marujo Sindabād ganhou a função de emoldurar histórias de marinheiros que tivessem sido submetidas à forma mais intensa de fabulação. Sindabād passou a ser um indício de que a anedota em curso continha elementos maravilhosos, bem como de que seguia uma exposição mais ou menos formular. Assim, o personagem Sindabād virou uma espécie de arquétipo do caráter duvidoso dos viajantes, cujos relatos soam sempre tão estranhos quanto incríveis.

Pedro Criado

Pedro Martins Criadoé doutorando no PPG-LETRA da FFLCH/USP, onde também concluiu o bacharelado em Árabe e Português, e o mestrado em Estudos Árabes. Pesquisa literatura árabe clássica, relatos de viagens, e historiografia e geografia islâmicas do período medieval. Atua como tradutor e professor.

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