Quando a editora me convidou para escrever este texto de orelha, quase recusei o convite. Eu sabia que tornaria a leitura de Memória para o esquecimento uma prioridade — como tenho feito com Mahmud Darwich — e o tempo era curto, e eu precisava acabar a leitura de um pequeno romance, e eu tinha que dar aulas… Mas, antes de desistir, fui dar uma olhadinha no texto. Só consegui largar quando virei a última página.

Encontrei aqui o que faz de Darwich um dos principais escritores das últimas décadas: imagens fortes e construídas com precisão, um texto cadenciado e, ainda assim, livre de amarras, e o compromisso político sem ambiguidades. Tudo isso aparece em sua poesia, muito bem traduzida no Brasil. Agora, em prosa, Darwich além de tudo estabelece reflexões significativas: se o flaneur de James Joyce passeia em um dia comum por uma cidade conturbada, mas pacífica, do início do século XX, aqui, 60 anos depois, o giro se dá em meio a um feroz bombardeio que destrói uma das mais belas metrópoles do Oriente Médio. O recado é claro: o Modernismo precisa rever alguns de seus pressupostos. Darwich faz isso. Em Memória para o esquecimento, o narrador tem a mesma identidade do nome que assina a obra, e a colagem de citações — que vão da literatura clássica a artigos de jornal — serve não para criar um panorama, e sim para claramente tapar os buracos que as bombas vão abrindo. A Nakba palestina, o autor-narrador-personagem nos adverte, é bem mais ampla do que os limites geográficos podem, de início, deixar parecer.

Memória para o esquecimento ganhou um sentido especial para mim. O enredo se passa em um único dia de 1982, durante o bombardeio israelense a Beirute. Nesse ano, eu era muito novo, mas me lembro até hoje: meu bisavô, que tinha vindo com a família do Líbano para o Brasil justamente na época em que Joyce redigia o Ulysses, telefonou para cada um dos filhos, todos já idosos, para justificar sua opção. Em casa, eu perguntava sobre os bombardeios e não entendia muito bem a explicação da minha mãe. Mas ali mesmo compreendi por que os velhos da minha família pareciam ter um buraco por dentro.

Ricardo Lísias   


Conheça o livro: Memória para o esquecimento


Mahmud Darwich nasceu na aldeia de Al-Birwe, na Galileia, em 13 de março de 1941. Foi, e ainda é, mesmo depois de sua morte em 2008, o poeta nacional da Palestina. Poeta da solidão, do exílio, da interioridade, da transcendência, mas também da resistência. Considerado um dos maiores escritores de língua árabe, Darwich foi amado e admirado também em muitos países onde sua extensa obra foi traduzida. Memória para o esquecimento e é o terceiro livro de Darwich publicado pela editora Tabla. O primeiro foi Da presença da ausência (traduzido por Marco Calil) e o segundo, Onze astros (traduzido por Michel Sleiman).


Safa Jubran nasceu em Marjeyoun, no Líbano, em 1962, e chegou ao Brasil em 1982. É professora livre-docente na Universidade de São Paulo, onde leciona língua e literatura árabes, desde 1992. Em 2019, recebeu, pelo conjunto da obra traduzida, o Sheikh Hamad Award for Translation and International Understanding. Traduziu para a Tabla Correio noturno, O arador das águas, ambos de Hoda Barakat, e Memória para o esquecimento, de Mahmud Darwich.

Ricardo Lísias

Ricardo Lísias é romancista e professor, formado em Letras pela Unicamp, foi considerado pela revista inglesa Granta um dos melhores jovens escritores brasileiros. Foi finalista do Prêmio Jabuti de 2008 e do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010.

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