Relatos da China e da Índia é um conjunto de dois livros, um do século 3 H./9 d.C. e outro do século 4 H./10 d.C. O primeiro – de autoria incerta, mas convencionalmente atribuído a uma figura de nome Sulayman Attajir (“o mercador”) – é uma espécie de diário de bordo que reúne relatos de mercadores e marinheiros, misturando observações gerais sobre as regiões e povos ao longo da rota marítima entre o Golfo Pérsico e Guangzhou, na China. É uma compilação de informações e maravilhas, ora empírica, ora mirabolante.

A Tabla fez uma breve entrevista com o tradutor do livro, Pedro Martins Criado, para que ele pudesse apresentar o livro para o público brasileiro. Confira:

– Qual a importância de publicar o “Relatos da China e da Índia”?

Penso nesta questão de algumas maneiras diferentes, mas vou destacar duas: uma geral e uma específica.

A primeira importância é como um livro do período pré-moderno traduzido do árabe ao português, pois tais obras como um todo ainda são pouquíssimas no horizonte do leitorado lusófono, sejam elas literárias, históricas, filosóficas, científicas, etc. Isso faz com que a maior parte das tradições textuais do Oriente Médio não seja acessada por quem não conhece as línguas da região ou, pelo menos, uma outra língua para a qual haja traduções. Sendo assim, todas as traduções são bem-vindas, e esta é uma tentativa de contribuir com aquelas e aqueles que se interessam pela literatura produzida historicamente em língua árabe.

A segunda importância, que chamei de específica, é por se tratar de um livro praticamente único em seu próprio contexto. Na literatura árabe islâmica, o “Relatos da China e da Índia” é o exemplar mais antigo de uma obra dedicada ao que se sabia, entre os séculos 9-10 d.C., sobre a porção oriental do mundo para além do território sob domínio dos Abássidas (750-1258 d.C.), que se estendia até o atual Paquistão. Nesse sentido, ele nos oferece uma maneira única de conhecer esta literatura do período que reúne relatos de viajantes, geografia descritiva, maravilhas e narrativas cortesãs, e nos apresenta um pouco do que muçulmanos de língua árabe conheciam sobre os povos e regiões às margens do Oceano Índico.

– Como você apresentaria “Relatos da China e da Índia” para o público brasileiro?

O “Relatos da China e da Índia” é um conjunto de dois livros escritos em árabe e separados por cerca de 70 anos. O primeiro remonta à metade do século 9 d.C. e consiste numa compilação de relatos e narrativas de marinheiros e comerciantes muçulmanos que circulavam pelas rotas do Oceano Índico e, principalmente, pela Índia e pela China. Por vezes, é atribuído à única figura mencionada nominalmente no texto, um certo Sulayman al-Tajir, ou “Sulayman, o mercador”, mas há discordâncias quanto a isso. Sua narração tende a ser direta, sem floreios retóricos, e demonstra interesse por informações comerciais e costumes de comunidades variadas, mas também por curiosidades e histórias deslumbrantes.

O segundo livro, por sua vez, remonta à primeira metade do século 10 d.C., e já se inicia com a apresentação de seu compilador: Abu Zayd al-Hasan al-Sirafi. Este nos diz apenas que foi encarregado de verificar o primeiro livro e que lhe acresceu um outro com aquilo que sabia estar relacionado aos mesmos assuntos. Sua narração, contudo, é muito menos interessada por dados, e muito mais por histórias que entretenham uma audiência formada por pessoas da corte, provavelmente envolvidas com as atividades dos mercados e do comércio. Essa audiência transparece nas narrativas reunidas por Abu Zayd, onde os temas abordados no primeiro livro servem como motes de histórias maravilhosas, cuja prioridade passa a ser divertir mais do que informar. No contexto da literatura árabe islâmica, esse processo de fabulação está diretamente relacionado ao surgimento da personagem Sindabad al-Bahri, que a maioria de nós provavelmente conhece através das fantásticas histórias do “Livro das mil e uma noites” como Simbá, o marujo.

– Quais os desafios na tradução do livro para o português?

Vejo as dificuldades a partir dos mesmos dois pontos que mencionei sobre o geral e o específico.

De saída, ao lidarmos com obras de temporalidades afastadas, estamos diante do desafio do anacronismo. Isso não se dá somente na tradução do léxico, mas também nas implicações históricas de traduzir concepções e termos que operam num contexto próprio, o qual, com frequência, não é o mesmo de hoje. Também incluo nesse âmbito geral a questão religiosa, pois o teor islâmico é um componente crucial das perspectivas dos informantes muçulmanos, o que eu, por não ser muçulmano, devo levar em consideração durante todo o processo.

No âmbito mais particular deste livro, algumas das maiores dificuldades estão nas referências que ele faz a coisas ou palavras que remetem a algo específico, como plantas, animais, topônimos e o que conhecemos como estrangeirismos. Há inúmeros exemplos de palavras de outras línguas adaptadas à escrita árabe, mas nem sempre elas trazem os diacríticos – isto é, os sinais de vocalização do sistema de escrita árabe –, sem os quais não sabemos como pronunciá-las com precisão.

Nos casos de elementos da fauna e da flora, o que costuma acontecer é um uso de termos que, hoje, têm sentido mais genérico, mas que, no contexto do livro, são referências reconhecíveis de imediato; a título de exemplo, seria mais ou menos como se você precisasse saber que sempre que o texto usa uma palavra aparentemente abrangente como “pimenta”, na verdade, isso quer dizer uma forma específica como “pimenta do reino”, e não “vermelha”, “caiena”, “biquinho”, etc. Com isso, é sempre necessário buscar outras formas de determinar essa referência específica, como a região geográfica em que estão sendo localizadas, ou explicações de outros textos sobre a mesma coisa.

– Conte para os leitores da Tabla como você encontrou o manuscrito e como foi o trabalho de pesquisa sobre os contextos das histórias contidas nos relatos?

Meu primeiro contato com o “Relatos da China e da Índia” se deu no contexto das minhas pesquisas sobre relatos de viagens escritos em árabe durante o período pré-moderno – mais especificamente, a partir da figura de Sulayman al-Tajir, que é mencionado como um dos viajantes mais antigos que conhecemos nesta literatura. Isso me levou a procurar o livro do qual adivinha essa figura e, assim, cheguei ao “Relatos da China e da Índia”. Por vezes, encontrei apenas o primeiro livro – que circula também de forma independente –, mas, eventualmente, encontrei edições do conjunto que temos hoje.

Quando comecei a traduzir o texto, pesquisei as diferentes fixações e traduções que pudesse usar, e aprendi que o livro correspondia a um único manuscrito, o qual, por sua vez, está digitalizado e disponível no site da Biblioteca Nacional da França. Para minha tradução em si, usei somente fixações estabelecidas, mas ter um acesso fácil ao manuscrito é um ótimo recurso para quem pensa na filologia e na transmissão material de textos. Acabamos nos pautando nele para tomar algumas decisões editoriais.

Em relação à pesquisa, é um trabalho predominantemente intertextual, baseado em procurar paráfrases ou derivações do “Relatos da China e da Índia” em outras obras geográficas do período e vice-versa. Com isso, podemos delinear alguns usos que o livro teve ao longo do tempo, ou seja, tomando como parâmetro sua recepção. O motivo de nos focarmos nisso e não nos antecedentes é o caráter oral dos relatos coletados para o livro, o que faz com que ele praticamente não possua citações extraídas de outras fontes escritas. Nos estudos árabes e islâmicos, há ainda uma bibliografia considerável a respeito de aspectos variados do “Relatos da China e da Índia”, bem como dessa literatura geográfica como um todo, o que oferece um bom amparo a quem queira pesquisar questões como as que mencionei antes.

– O que você destacaria do livro para os leitores da Tabla?

Acho que o que mais se destaca no “Relatos da China e da Índia” é a multiplicidade que ele contém. Embora não se trate de um livro de literatura como entendemos atualmente, ele oferece muitas possibilidades de leitura tão distintas quanto complementares. De suas características mais únicas, chamam a atenção os olhares atentos de seus informantes para descrever o mundo, além da conectividade e da intensa circulação de pessoas que raramente vemos associada ao período pré-moderno.

Internamente ao livro, destaca-se, certamente, a convivência do trivial e do maravilhoso, pois é a partir dessa coexistência que somos mais fortemente confrontados com a necessidade de nos desapegarmos de um modo de leitura convencional, acostumada à naturalização de uma cisão categórica entre fato e ficção. Acho que a experiência mais intrigante que o “Relatos da China e da Índia” pode propiciar aos leitores é a do exercício de adentrar as perspectivas de seus relatores, tanto no espaço como no tempo.

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Pedro Martins Criado é bacharel em Árabe e Português e mestre em Estudos Árabes pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Estudou língua árabe clássica e dialeto egípcio no Instituto Francês do Cairo. Trabalha como tradutor e professor e vive em São Paulo.

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